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Detalhe

Rio Tejo

Lugar de gentes e mercadorias

No próximo dia 25 de setembro comemora-se o Dia Mundial dos Rios1. O objetivo da data é incentivar as pessoas a promover a preservação dos rios, aumentando o conhecimento sobre a sua importância para os ecossistemas. O Arquivo Municipal de Lisboa pretende assinalar o Dia, trazendo à colação um documento que evoca o rio Tejo e a sua importância na história da cidade de Lisboa e do país, enquanto lugar de encontro e de passagem de gentes e mercadorias.

O documento em apreço2, datado de 23 de dezembro de 1757, refere-se a um registo da carta de propriedade vitalícia do ofício de capataz que a Chancelaria da Cidade passou a José Rodrigues, por falecimento do anterior titular, Manuel de Matos. O novo capataz, nomeado pelo Senado em concordância com o seu presidente e conselheiro real, era latoeiro de fundição e tinha desempenhado com “bom procedimento e inteireza” o cargo de procurador dos mesteres no Senado da Câmara e jurou que cumpriria os procedimentos para exercício do cargo. Funções como as descargas e transporte dos figos, passas, esteiras, vassouras, odres e barris de azeite, que eram transportados por barco desde o Algarve até ao cais de Lisboa, estavam a seu cargo, sem que lhe fosse colocado algum impedimento, salvo decisão contrária do Senado da Câmara.

As capatazias eram constituídas por homens, comandados pelo capataz, que procediam às cargas e descargas das embarcações que entravam no Tejo. Se anteriormente a 1753 não tinham o poder de nomear ou destituir os seus homens, a partir de 25 de agosto desse ano, os capatazes vão passar a fazê-lo, ficando o Senado da Câmara apenas com a responsabilidade sobre quatro capatazias do “pão do mar”3

O documento é acompanhado de uma Apostila datada de 22 de março de 1776, quinze anos depois da cedência da carta vitalícia ao capataz José Rodrigues, que vinha reforçar a responsabilidade da capatazia da “Companhia da descarga e carreto dos géneros que vinham do Algarve”, ao acrescentar que esta deveria proceder também à descarga e carreto do sumagre proveniente do Algarve enquanto a Companhia da Manteiga e mais géneros faria “o desembarque e carreto do mesmo sumagre, que vier de outra parte, sem ser do Algarve”. O Senado concordou, registando que tal função seria mais adequada a quem já trabalhava com as mercadorias vindas do Reino do Algarve, responsabilizando os capatazes das duas companhias, José Rodrigues e Domingos Francisco, outro capataz que a apostila nos dá a conhecer. 

O sumagre (frutos e ramagem), moído em atafonas, era totalmente aproveitado para a curtição e tingimento de peles, culinária e farmacopeia4. O que talvez explique a intenção dos atafoneiros de Lisboa requererem, em 1708, ao rei D. João V, para serem anexados à bandeira dos tecelões5

Outro aspeto interessante a sublinhar na apostila é a marca de água que identifica: “Camara”. Esta marca bem visível, no sentido contrário ao texto, revela que o próprio município seria produtor, fabricante ou encomendador do papel necessário para as funções quotidianas das suas repartições6

Outros documentos semelhantes a este comprovam a riqueza informativa dos registos da Chancelaria da Cidade para a compreensão da vida económica da cidade de Lisboa. Não seriam apenas as embarcações do país a sulcar diariamente o “Mar da Palha”7, aportando no cais da Ribeira das Naus e demais lugares das margens do Tejo. A Lisboa chegavam navios de todo o mundo. Para termos a perceção desta dinâmica vale a pena ver os Livros de entradas do Marco dos Navios, onde se registavam os despachos da entrada de embarcações nacionais e estrangeiras, seus nomes e dos seus mestres, proveniências, tipologia de carga e impostos pagos, em caso de descarga8

Para além dos navios, também os arrais das diferentes embarcações estavam sujeitos a autorização para o exercício da sua profissão, como se pode certificar pelas Cartas de mareantes9. Estas cartas licenciavam o arrais, autorizando-o a navegar ao longo do rio Tejo e Ribatejo. Outros registos, nos livros de Registo da Chancelaria da Cidade10, atestam os pedidos de certidões do ofício de arrais, acrescendo-se informação sobre o requerente, para além da identificação do sota patrão-mor da Ribeira das Naus que realizava o exame certificador.

O dinamismo económico era vivaz e os documentos fazem-nos escutar sons que saltam das palavras escritas. Podemos compreender a indignação dos ingleses da chalupa e do bergantim, vindos respetivamente de Veneza e de Londres, que ficaram obrigados a quarentena, fundeados, sem autorização para aportar11. Imaginamos fragatas, batéis, barcas, faluas que navegavam de uma margem a outra ou acompanhavam correntes e ventos. As cartas de examinação do ofício de arrais permitem detetar fragateiros e falueiros oriundos de Ovar, Aveiro, Faro, entre outras localidades da costa portuguesa. Capatazes davam ordens, carregadores faziam soar cantos de encorajamento e mulheres chamavam o peixe à canastra. 

É de todos, o Tejo. Da saudade e do passado, dos banhistas de uma época e dos turistas, lisboetas e portugueses que chegam e ficam, e dos que partem.

O rio permanece como plataforma comercial, local de encontro e de lazer. O rio das águas que escondem as tágides de Luís de Camões, ou as embarcações que ficaram por navegar com o Velho do Restelo a prendê-las, alusão a um atavismo conservador ou a uma premonição dos revezes que a história traria sobre a aventura que começava. O rio dos poetas, dos sonhos e das fugas, das lutas, dos medos e das revoluções. Por isso, citando Alberto Caeiro, “O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia”.

Luísa Martins
Setembro 2022
Arquivo Municipal de Lisboa - Histórico


1 O Dia Mundial dos Rios comemora-se no último domingo do mês de setembro. Neste ano de 2022, assinala-se no dia 25. O objetivo da data é promover a protecção, preservação e despoluição dos rios. (ver https://quercus.pt/2021/03/03/dia-mundial-dos-rios/ ou https://www.calendarr.com/portugal/dia-mundial-dos-rios/).

 O documento está registado com o número 30, em fólio 31v e é acompanhado por um aditamento – “Apostila” – que foi copiada no seu seguimento, no fólio 32. A apostila ficou numerada como um documento individual, com o número 31.

3 OLIVEIRA, Eduardo Freire – Elementos para a História do Município de Lisboa. Lisboa: Typographia Universal. 1908. 1ª parte, tomo XVI, p. 24.

4 FERNANDES, Isabel Maria; OLIVEIRA, António José – Ofícios e mesteres vimaranenses nos séculos XV e XVI. [Em linha]. P.202. [Consult. 26/07/2022]. Disponível na Internet

5 Alteração que não se terá verificado uma vez que, em documentos do século XVIII, vamos continuar a ver os atafoneiros integrados na bandeira dos moleiros. PARENTE, José Melo – Atafona. In SANTANA, Francisco; SUCENA, Eduardo - Dicionário da História de Lisboa. Lisboa: Carlos Quintas & Associados. 1994. p. 113.

6 SANTOS, Adriana Batista Ferreira; SOUSA, Maria Beatriz de Castro Nunes Lobato de; NUNES, Maria Helena Lopes dos Reis Oliveira – Levantamento e caracterização de marcas de água no Arquivo Municipal de Lisboa. Cadernos do Arquivo Municipal. Nº 10 (julho-dezembro 2018), p. 111-130. [Consult. 18/07/2022]. Disponível na Internet.

7 Richard Zenith recupera esta expressão na recente obra. ZENITH, Richard – Pessoa: uma biografia. Lisboa: Quetzal Editores, 2022. p. 43.

8 A título de exemplo, deixamos a referência ao Livro de entradas do Marco dos Navios, para que os nossos leitores possam, a partir dele, conhecer a riqueza informativa deste e outros livros (Arquivo Municipal de Lisboa - AML, f. 01 a 99v, 1773-01-04 – 1774-12-21, PT/AMLSB/CMLSBAH/IMPS/003/005).

9 AML, Cartas de Mareantes, 1765-1865. PT/AMLSB/CMLSBAH/IMPS/017.

10 AML, Registo da Chancelaria da cidade. PT/AMLSB/CMLSBAH/CHC/038.

11 AML, Provimento da Saúde, Livro de Registo de Avisos da Secretaria de Estado à Provedoria-Mor da Saúde, 1762-02-13 - 1810-01-13, f.56v e 57, 1791-07-22 - 1791-07-24. PT/AMLSB/CMLSBAH/PS/02/0003/0116.