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Detalhe

25 de Abril e a habitação em Lisboa

As reinvindicações da Comissão de Moradores do Bairro da Quinta da Calçada

Código de referência: PT/AMLSB/CMLSBAH/GEGE/034/123/002; Páginas 168-171
Carta da Comissão de Moradores da Quinta da Calçada, Lisboa, 1974-09-05

Na sequência da Revolução de 25 de Abril de 1974, que neste mês celebra o 50º aniversário, ocorreu uma vaga de mudanças políticas, sociais e económicas em Portugal, que favoreceu o surgimento de movimentos de reivindicação social de diversa ordem.

Nas semanas seguintes a 25 de abril, sucederam-se “os primeiros movimentos de moradores para a ocupação de casas desabitadas e, nos meses seguintes, assistir-se-á a poderosas mobilizações sociais de moradores nas principais áreas urbanas do país. À frente delas estarão as Comissões de Moradores” (Reis et al., 2016, p. 240), que deram voz à reivindicação por melhorias na habitação e nas condições de vida nos bairros mais desfavorecidos, constituindo-se como grupos populares de pressão junto dos poderes públicos e adotando estratégias, como a ocupação de fogos abandonados, protestos, negociações com autoridades e campanhas de consciencialização para alertar a opinião pública para os seus problemas (Reis et al., 2016, p. 237-242).

O fenómeno cresceu exponencialmente e, apenas em Lisboa, "de pouco mais de uma dezena em junho de 1974, passou-se a mais de trinta no final de janeiro do ano seguinte, e novas comissões começaram a aparecer rapidamente a partir de março de 1975"1 (Pinto, 2013, p. 83). 

O documento que se apresenta neste mês é um testemunho desta época e do tipo de reivindicações protagonizadas pelas comissões de moradores. Trata-se de uma carta da Comissão de Moradores do Bairro da Quinta da Calçada, em Lisboa, presumivelmente datado de 9 de junho de 19742, onde os seus signatários expõem os problemas existentes com as habitações e as infraestruturas, e exigem ao Estado a sua resolução imediata propondo também uma solução definitiva para o futuro do bairro.

Antes de Abril de 1974, e durante o quase meio século de regimes autoritários em Portugal (Ditadura Militar de 1926 a 1930, e o Estado Novo, de 1930 a 1974), as carências habitacionais nunca foram eficazmente resolvidas, apesar dos vários programas estatais ao longo de décadas para a construção de habitação económica e social (Antunes, 2018; Baptista, 1999; Teixeira, 1992)3
No âmbito da preparação da Exposição do Mundo Português, a realizar em 1940, o governo decidiu eliminar os principais núcleos de “barracas” em Lisboa. O Bairro das Minhocas, no Rego, de precárias e insalubres habitações de autoconstrução, sem rede de abastecimento elétrico e de água, sem infraestruturas de saneamento básico, de circulação ou de apoio social e que suscitava acesos debates de indignação na imprensa da época (Santos, 2015, p. 378-384), tornou-se, a par do Bairro da Bélgica e dos agrupamentos familiares que viviam em grutas na serra de Monsanto, um dos alvos de atenção (Pinto, 2013, p. 48).

Foi, portanto, na origem destas demolições e do realojamento das suas populações, que nasceu, em 1938, o Bairro da Quinta da Calçada4. Construído numa antiga propriedade rural junto à Cidade Universitária e ao Hospital de Santa Maria, este bairro foi uma iniciativa enquadrada nos preceitos legalistas, morais e sociais do Estado Novo. Seguindo um princípio paternalista e disciplinador, contava, para além das habitações, com duas escolas e dois edifícios destinados ao posto de polícia e à administração5, enquadrados no desenho dos arruamentos e das habitações, e uma igreja como ponto central e organizador do espaço. 

A construção destes bairros de realojamento foi concebida “como pontos de paragem temporários onde os pobres aprenderiam hábitos que os integrariam no Estado Novo" e, se “se mostrassem trabalhadores, respeitadores e cumpridores das instruções da administração", seriam candidatos “a melhores categorias de habitação social”6 (Pinto, 2013, p. 63).
Por isso, as habitações foram construídas em pré-fabricados segundo o modelo das “casas desmontáveis”, ou seja, feitas de chapas de metal lusalite, sem isolamento térmico e com acabamentos de qualidade inferior (Pinto, 2013, p. 89). Com a passagem do tempo, a utilização e a falta de manutenção, as habitações sofreram uma degradação progressiva e acentuada, tornando a habitabilidade precária. Em paralelo, as infraestruturas e os serviços públicos disponíveis, como o fornecimento de energia elétrica e de água, ou o saneamento, nunca foram devidamente implementados em acordo com as necessidades da população.

No entanto, na propaganda do Estado Novo, o bairro foi candidamente apresentado como “de casinhas brancas e higiénicas, felizes e alegres sucessoras de espeluncas infectas e mal cheirosas”7.
Logo após a Revolução, os moradores criaram a comissão de moradores, eleita “com o apoio do Regimento de Engenharia 1, da Pontinha” (Lisboa: o outro Bairro, 1999, p. 17) que, através da exposição pública dos seus problemas e pela pressão junto das autoridades, procurou a resolução dos problemas graves que afetavam o bairro.

No documento que agora se apresenta podemos distinguir duas partes que organizam o seu conteúdo: a caracterização do estado degradado das habitações e das infraestruturas do bairro e onde se elencam os problemas mais prementes a nível habitacional, sanitário, securitário e escolar; e as medidas urgentes que a comissão entendia que o Estado deveria empreender de forma a minimizar os problemas imediatos. 

Cuidadosamente redigido, o documento foi dirigido ao Secretário de Estado da Habitação e do Urbanismo, Nuno Portas, com cópias enviadas ao Presidente do Conselho, à Junta de Salvação Nacional, ao Gabinete Técnico da Habitação da Câmara Municipal de Lisboa (GTH/CML) e à imprensa8.

O texto começa por fundamentar a sua origem, resultado de uma “Assembleia Magna”9 dos residentes nos primeiros nove dias de junho de 1974, “para analisar os seus problemas e traçarem um plano de actuação para a satisfação das suas mais elementares condições de habitação e salubridade”. De seguida, expõem-se os problemas do bairro, identificados e agrupados pelo estado de degradação das habitações “que dificilmente albergariam animais”, a sobrelotação, a propagação de doenças, o deficiente abastecimento de eletricidade, a insegurança e, por último, as lacunas na educação. A linguagem é direta e não se coíbe em utilizar frases fortes que elucidam e espelham a crueza dos problemas: “as chapas de lusalite que formam as paredes e os telhados estão partidas, cheias de buracos e quase todas a cair”, o que obrigava “a colocar sobre as camas recipientes para aparar as águas da chuva”. Mas, também “as portas, janelas e soalhos estão a cair” e “as retretes são impróprias”.

As consequências da degradação das habitações eram demasiado sérias e, não existindo sequer um posto sanitário ou de primeiros socorros, tornava-se evidente que “a humidade própria deste tipo de habitação” conduzia “pessoas de tenra idade a contraírem doenças nos ossos” e “casos de cólera e febre tifóide”. E perguntava-se “até quando, é possível viver neste inferno?”.
Denunciava-se também a deterioração e incapacidade do abastecimento elétrico para suprir as necessidades básicas das habitações, o que implicava que “no Inverno, o bairro raramente tem luz e, de verão, não pode haver iluminação pública para se poder utilizar a electricidade em casa”. A insegurança é também alvo de preocupação, pois não existindo policiamento, “a situação é propícia às provocações e à actuação dos ladrões”.

No remate à exposição dos problemas surge a talvez mais surpreendente proposta de resolução para o futuro:  a sua reconstrução em “casas de pedra e cal”, nos mesmo terrenos onde existia o bairro, uma solução “do agrado de todos os habitantes do Bairro”.

No entanto, era urgente fazer face às necessidades imediatas e, por isso, ponto por ponto, indicavam-se em alíneas próprias as medidas concretas que entendiam dever ser tomadas. Num último parágrafo acusava-se o GTH/CML de se esquivar aos problemas, apesar de se tratar de um bairro municipal, remetendo a sua solução para outras entidades.
Subscrito por mais de 200 assinaturas, o documento é rematado por um descontextualizado e inusitado “A Bem da Nação”, por certo um vincado resquício de outros tempos que a recente Revolução ainda não teria apagado da norma e do hábito.

Denise Santos
Abril de 2024
Arquivo Municipal de Lisboa | Geral e Histórico


1 Tradução nossa do original em inglês.

2 Apesar de o documento estar datado de 9 de maio de 1974, no seu parágrafo inicial indica-se que o texto resultou de uma reunião realizada entre 1 e 9 de junho. Portanto, deverá tratar-se de um erro na dactilografia do texto. A hipótese ganha mais consistência quando o Diário de Notícias, em notícia de 14 de junho, refere a produção deste documento.

3 O problema, contudo, existia desde o final do século XIX. Sobretudo na capital, verificou-se um aumento progressivo do número de bairros degradados, sobrelotados e de condições insalubres, especialmente nas áreas pobres ocupadas por população operária (comumente conhecidos por “bairros de lata”, aglomerados urbanos de construção informal ou bairros de loteamento ilegal). O fenómeno foi impulsionado por uma série de fatores que variaram, se conjugaram e agravaram ao longo de todo o século seguinte (Mattoso, 1994, p. 19-29). Em consequência, os “bairros de lata” multiplicaram-se em Lisboa criando desafios significativos em termos de habitação, infraestruturas e saúde pública.

4 Foi também construído, no mesmo âmbito e pelo mesmo programa de realojamento, o Bairro da Boavista, que albergaram, em conjunto, quase 4500 pessoas (Pinto, 2013, p. 48). Sobre o programa de construção do bairro, v. Lisboa: o outro bairro (1999).

5 Estes edifícios foram depois convertidos numa maternidade e infantário. Mais tarde, o bairro contou ainda com lavadouro público e um mercado municipal (Lisboa: o outro bairro, 1999, p. 11)

6 Tradução nossa do original em inglês.

7 Folheto de propaganda ao Bairro da Quinta da Calçada, encarte na Revista Municipal, nº 5, 1940. O controlo e gestão dos espaços e dos aspetos administrativos ficou a cargo da Comissão Administrativa dos Bairros de Casas Desmontáveis, que se encarregava de cobrar as rendas e taxas, enquanto o quotidiano da população era sujeito a vigilância por um fiscal e um guarda, antigos polícias, que redigiam notas sobre o comportamento da população (Pinto, 2013, p. 64; Lisboa: o outro bairro, 1999, p. 14-15).

8 Sob o título “Bairro Municipal da Quinta da Calçada: Exemplo flagrante das medidas provisórias que a incúria e o desleixo dos responsáveis transformaram em permanente pesadelo”, o Diário de Notícias de 14/06/1974, dedicou mais de duas páginas a uma reportagem sobre o estado degradante do bairro, ecoando as denúncias que o documento da comissão de moradores expunha.

9 Segundo Reis et al., “A formação de determinada Comissão de Moradores remete-nos normalmente para a realização de uma assembleia ou plenário dos moradores da área em questão, quase sempre por iniciativa de grupos de moradores mais esclarecidos ou ligados a grupos de esquerda. Essas primeiras reuniões elegem uma comissão e aprovam um caderno reivindicativo em que são colocadas as reivindicações mais prementes das populações (2016, p. 240).



Referências bibliográficas

ANTUNES, G. – Políticas de habitação: 200 anos. Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2018.

BAPTISTA, L. – Cidade e habitação social: o Estado Novo e o Programa das Casas Económicas em Lisboa. Oeiras: Celta Editora, 1999.

Lisboa: O outro bairro. Lisboa: Cidades & Municípios Editora, 1999.

MATTOSO, J. (coord.) – História de Portugal. Editorial Estampa, 1994. vol. 7: O Estado Novo.

PINTO, P. R. – Lisbon rising: urban social movements in the Portuguese Revolution, 1974-75. Manchester: Manchester University Press, 2013.

REIS, A; REZOLA, M. I.; SANTOS, P. B. (coord.) – Dicionário da História de Portugal: o 25 de Abril. Porto: Figueirinhas, 2016. vol. 2.

SANTOS, D. – Representações fotográficas de um plano de reabilitação do espaço urbano: o caso do Bairro das Minhocas e do Bairro da Quinta da Calçada por Eduardo Portugal (1938-1944). Cadernos do Arquivo Municipal. Nº 4 (2015), p. 369-390. https://doi.org/10.48751/CAM-2015-4277

TEIXEIRA, M. – As estratégias de habitação em Portugal, 1880-1940. Análise Social. Vol. XXVIII Nº 115 (1992), p. 66-67.