Detalhe
Aviso de 13 de novembro de 1756
A 16 de novembro comemora-se o Dia Nacional do Mar1, data que evoca a importância estratégica do recurso marítimo para a identidade portuguesa. Mas, terá sido este meio uma valência única e exclusivamente geradora de vitalidade, ou, em simultâneo, um veículo para transporte de dinâmica de morte?
Na obra seminal de Amândio Barros, A morte que vinha do mar: Saúde e Sanidade Marítima num Porto Atlântico (Séculos XV-XVII)2, é-nos dado a conhecer um conjunto de fontes da Câmara do Porto que evidenciam, não só a chegada de epidemias com porta de entrada pela via marítima, como também um conjunto de medidas que o poder político promulgou de forma a dirimir os efeitos nocivos da propagação de doenças infectocontagiosas3.
Neste conspecto, evocamos um documento cujo teor está intimamente relacionado com estas matérias, embora num espaço e num intervalo de tempo diferenciados do fixado pelo autor, uma vez que nos acomete para um registo do século XVIII, produzido e acumulado no âmbito das competências da Câmara de Lisboa4.
Trata-se do aviso do secretário de Estado do Reino, Sebastião José de Carvalho e Melo, de 13 de novembro de 1756, a informar o Senado da Câmara de Lisboa que acionasse os habituais mecanismos de providência cautelar para obstar à ameaça epidemiológica ocasionada pela chegada, ao porto marítimo de Belém, de um navio proveniente de Martinica, com notícia de “muita gente” embarcada “que tem morrido”5.
Perante o perigo iminente de propagação de doenças infectocontagiosas por ter entrado, no porto de Belém, o “Navio Frances Lanarride” de que era “Mestre Matheus Bullet”, o Senado da Câmara de Lisboa, aparelho administrativo de suporte às práticas de controlo sanitário na fronteira marítima da capital do reino, dispunha de um conjunto de recursos e de meios de operacionalização enformados por um quadro jurídico-normativo.
A materialização das orientações políticas que moldavam e estruturavam essas práticas remete-nos para dispositivos de feição estruturante, como o Regimento da Saúde para o Porto de Belém, confirmado por D. Pedro II em 1695, decorridos cerca de dois anos da sua redação pelo Senado da Câmara de Lisboa, em 16936.
À semelhança da organização subjacente a outros diplomas e corpus de textos legislativos, reunidos nas ordenações gerais do reino7, a estrutura integral do regulamento de 1695 integrava um total de vinte e dois capítulos subordinados a títulos temáticos.
Como o porto da cidade de Lisboa era “hum dos de Mayor Comerçio E por isso tão frequentado das Embarcações dos Naturaes E estrangeiros”, o propósito do instrumento normativo é-nos logo dado a conhecer no preâmbulo, sendo possível intuir uma preocupação com o “bem comum” presidida pelo objetivo de recorrer a todos “Os Meyos possíveis para obviar Os perigos a que esta exposta a saude publica”8.
O clausulado integrava, entre outras disposições, a obrigatoriedade de todas as embarcações que entravam na barra de Belém darem “fundo por baixo da Torre”, só sendo permitido o desembarque de passageiros e de mercadorias após despacho dos oficiais de Saúde, cujas competências também estavam consagradas e perfeitamente definidas quanto ao âmbito e limites jurisdicionais de atuação.
O oficialato da Saúde que assegurava as diligências cautelares na zona portuária, e que constituía o eixo central do combate epidemiológico, era constituído pelo provedor-mor, o guarda-mor, o escrivão, o guarda da bandeira e o intérprete, numa relação de complementaridade com o médico da Saúde e com o cirurgião da Saúde que assistiam nas visitas a bordo e emitiam pareceres sobre a sanidade da população embarcada9.
A essa configuração juntava-se ainda a figura do meirinho da Saúde de Belém, que detinha competências do foro judicial e cujo papel era vital para a manutenção da ordem pública, em virtude de o porto marítimo se tratar de uma circunscrição espacial, que “por Respeito de ser porto de mar, onde dão fundo as embarcações que vem a esta Cidade, e muito populoso pela gente que o habita, e pelo Concurso da que dezembarca”10, resultava reiteradamente “hauer de ordinario pendenciação, a que a justiça de necessidade, e por obrigação de seu offiçio ha de acudir”11.
Para além dos mencionados recursos humanos, o Senado da Câmara de Lisboa dispunha ainda de infraestruturas de suporte ao confinamento de todas as pessoas e fazendas que fossem despachadas pelos oficiais de Saúde. Assim, em caso de deteção de focos infecciosos a bordo ou da sua mera suspeição, o que, em ambas as situações, colocaria em perigo a saúde coletiva pelo risco de contágio que comportava, pessoas e mercadorias eram encaminhadas para o Lazareto da Trafaria, local onde se assoalhariam durante cerca de quarenta dias12.
Toda esta dinâmica era tutelada pelo provedor-mor da Saúde da Corte e Reino, cujas funções, à data do aviso compulsado, de 13 de setembro de 1756, eram exercidas pelo desembargador Francisco Galvão da Fonseca que assinou o documento em análise junto com Sebastião José de Carvalho e Melo13.
Adelaide Brochado
Novembro 2024
Arquivo Municipal de Lisboa | Geral e Histórico
1 Instituído pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 83, de 10 de julho de 1998. Resolução do Conselho de Ministros n.º 83/98 | DR.
2 Barros, A. J. (2013). A morte que vinha do mar: Saúde e sanidade marítima num porto atlântico (séculos XV-XVII). Fronteira do Caos Editores.
3 Na época Moderna as doenças infectocontagiosas eram designadas sob a égide comum de peste. Sobre esse assunto e outras temáticas do foro da História da Medicina veja-se a obra de Maximiano Lemos (1991), editada pela primeira vez em 1889, História da Medicina em Portugal: Instituições e doutrinas (Vol. II). D. Quixote.
4 Sobre as competências da Câmara de Lisboa, veja-se o Regimento do Principe D. Pedro, dado â Camara de Lixboa”, a 5 de setembro de 1671. Arquivo Municipal de Lisboa (AML), Chancelaria Régia, Livro 2.º de consultas e decretos de D. Pedro II, f. 4. O diploma vigorava ainda em 1756 e a derrogação só viria a ser determinada por Decreto de 18 de julho de 1835, tendo sido objeto de publicitação no Diário do Governo n.º 169, de 20 de julho do mesmo ano.
5 AML, Chancelaria Régia, Livro 10.º de consultas, decretos e avisos de D. José I, f. 345-345v.
6 AML, Provimento da Saúde, Livro de regimentos e posturas da Casa da Saúde, f. 3-15. O diploma, redigido pelo Senado em 1693, é “confirmado pelo rei D. Pedro 2.°, que Deus tenha em gloria, por resolução de 2 d'abril de 1694”, sobre o qual “se passou alvará da confirmação em 7 de fevereiro de 1695”. AML, Chancelaria Régia, Livro 6.º de registo de consultas e decretos de D. João V do Senado Ocidental, f. 19. Sobre questões relacionadas com práticas de prevenção epidemiológica da Câmara de Lisboa no porto marítimo de Belém, entre 1693 e 1760, veja-se Lopes, M. A. B. (2023). Prevenção epidemiológica no porto de Belém: Fontes de informação, recursos e procedimentos da Câmara de Lisboa (1693-1760) [Dissertação de mestrado, Universidade de Lisboa]. ULISBOA. http://hdl.handle.net/10451/58484.
7 Sobre a divisão em títulos temáticos inclusa nas ordenações gerais do reino veja-se Ordenações Filipinas (1985). Fundação Calouste Gulbenkian.
8 AML, Provimento da Saúde, Livro de regimentos e posturas da Casa da Saúde, f. 3. A mesma matriz encontra-se, também, espelhada no “Regimento que Se ha de observar suçedendo hauer peste (de que Deos nos Liure) em algum Reyno, ou Provinçia confinante com Portugal”, promulgado por D. Pedro II, também em 1695, e que tinha como foco a contenção de epidemias com porta de entrada pela fronteira terrestre. Idem, f. 15v-20v. Sobre a identificação dos surtos epidémicos que grassaram na cidade de Lisboa no século XVII, veja-se Barros (2015). Lisboa na confluência das rotas comerciais: Efeitos na saúde pública (séculos XV a XVIII). Cadernos do Arquivo Municipal, (3), 251-263. http://scielo.pt/pdf/cam/vser2n3/vser2n3a12.pdf.
9 O regimento da Saúde para o Porto de Belém consignava a obrigatoriedade dos que desempenhavam funções como guarda-mor da Saúde, escrivão da Saúde, guarda da bandeira da Saúde e intérprete da Saúde terem residência fixa em Belém. AML, Provimento da Saúde, Livro de regimentos e posturas da Casa da Saúde, f. 3v-5v.
10 AML, Chancelaria Régia, Livro 9.º de registo de consultas e decretos de D. Pedro II, f. 203-204.
11 Idem, f. 203v.
12 A 7 de agosto de 1565, o cardeal D. Henrique, em nome de D. Sebastião, ordenava à Câmara de Lisboa que construísse um lazareto na Trafaria, termo da vila de Almada, onde as tripulações dos navios que, com ou sem mercadorias, viessem de locais afetados pela peste se pudessem “assoalhar” pelo tempo que fosse necessário. AML, Provimento da Saúde, Cópia do livro 1.º do provimento da saúde, f. 50v-51. Sobre a prática de assoalhamento em lazaretos na Europa da época Moderna, veja-se Abreu, L. (2018). A luta contra as invasões epidémicas em Portugal: Políticas e agentes, séculos XVI-XIX. Ler História, (73), 93-120. http://hdl.handle.net/10174/24802.
13 Não obstante ser uma hierarquia de topo, Francisco Galvão da Fonseca, requereu por diversas vezes, ajudas de custo. Veja-se a esse propósito o requerimento que submeteu na Chancelaria da Cidade, a 5 de outubro de 1759, no qual solicitava, por ter ido “assistir com os oficiais da Saúde do Porto de Belém no sítio de Paço de Arcos por bem da saúde pública”, “ajuda de custo três mil e duzentos réis por dia”. AML, Chancelaria Régia, Livro 5.º de registo de consultas e decretos de D. José I, f. 45-47. Sobre a importância estratégica do provedor-mor da Saúde configurado como a entidade sanitária que, desde o Regimento de 27 de setembro de 1526, superintendia em assuntos de sanidade pública, cabendo-lhe, além da fiscalização do Porto de Belém, a defesa dos portos de mar veja-se Subtil, C. L. L. (2013). A saúde pública e os enfermeiros entre o vintismo e a Regeneração (1821-1852). [Tese de doutoramento]. Universidade Católica Portuguesa. https://repositorio.ucp.pt/handle/10400.14/18295.