Detalhe
Carta régia de D. João I, 1426
A 18 de abril de 1426 era registada e autenticada no expediente da Chancelaria Régia uma carta de D. João I que viria a moldar a configuração dos procedimentos jurídicos perpetrados pelo oficialato do Concelho com legitimidade para julgar feitos e pronunciar sentenças1.
Sob a égide da justiça, este mês, evocamos os contornos assumidos pelo diploma de 1426, promulgado pelo poder político com o objetivo de orientar, embora de forma impositiva, para o uso e o recurso a fontes de direito subsidiário, nas situações em que houvesse lacunas identificadas nos ditames de lei, costume e estilo 2.
Versando a justiça sobre a “vontade permanente e constante de dar a cada um o que é seu”3 de acordo com princípios de equidade, razão e direito e assumindo-se, nesta lógica, o direito como objeto da justiça ao instrumentalizar a sua aplicabilidade mediante o estabelecimento de um quadro normativo de feição vinculativa, atentemos ao que, neste domínio, as determinações que D. João I dirigiu ao “Coregedor e comçelho e homens boons da nossa muy nobre leall çidade de lixboa”4 evidenciaram.
Em primeiro lugar, tratava-se de estatuir localmente para a cidade de Lisboa, não tendo o decretado efeito aplicável a todo o reino e não constituindo, por esse motivo, componente integrante da ordenação geral 5.
Seguidamente, sobressai a tentativa de sistematização de um conjunto de diplomas de teor jurídico num único dispositivo “bem sabees o tralado que nos tomamos per que os fectos de nossos Regnos fossem desembargados per huum termo soo”6, intenção que já havia sido iniciada com a compilação de uma coletânea de textos de direito romano, trasladados por glosadores medievais, a partir de uma criteriosa seleção das fontes originais reunidas no Código de Justiniano7 “o qual foy outorizado pelas forças das leix do codigo”8 e “decraradas E outorizadas pellas enteençoees finaaes das grossas”9 .
E quanto às “grossas”, ou seja, a formalização de um quadro de referências de legislação a observar, quais as que vigoravam no reinado de D. João I e que se encontravam espelhadas na carta régia de 1426?
O documento remete-nos para dois glosadores, Acúrsio e Bártolo, cuja obra, constituiu subsídio primacial para a fundamentação jurídica na Medievalidade. Embora seja possível atribuir-lhes diferenciação pelo facto de, no primeiro caso, nos ter chegado um conjunto de fontes de direito fidedigno aos originais, “entençom da cursio que sobrello escripueo ora fosse per hũa grossa ou per duas ou per tres ou mais segundo he esprito Nos liuros”10, na segunda versão, a de Bártolo, é-nos transmitida legislação aditada por anotações que imprimiam, a título de comentários, uma interpretação sumária do Código de Justiniano, “que as conclussooes de bartallo que de sob ellas leix do codigo ffez”11.
Relativamente a ambas as opções, D. João I determinava que os oficiais de justiça do Concelho de Lisboa que até à data, tinham por diretiva régia, recorrido preferencialmente, na apreciação de feitos e na pronunciação de sentenças, à fonte de Bártolo, “e esto quissemos que as conclussooes de bartallo que de sob ellas leix do codigo ffez que estas seiam autenticadas Ca esta he Nossa Vontade”12, passassem a ter um recurso mais incisivo e de maior eficácia para a apreensão de conteúdos.
A melhoria a esse nível passava pelo primado da substituição, sempre que possível, do articulado em latim “por que estas leix e estas grossas e leitura de bartallo”13, “por que os tralados de tirar de latim em linguaJem Nom som tam craros que os homens que muyto nom sabem os podessem bem entender”14.
E como se materializava a mudança para uma maior rentabilização do expediente do oficialato que integrava o quadro de magistraturas da cidade de Lisboa e que detinha competências acometidas em matéria de justiça15?
A alteração visada passaria pela promulgação de uma alternativa impactante que reunisse a vantagem de, para além de agregar o maior número de clausulado direcionado para os desembargos de questões relacionadas com a administração da justiça na cidade de Lisboa, colmatando dessa forma vazios jurídicos, viesse a permitir, ainda, uma diminuição do tempo gasto na leitura e na tradução do preceituado registado integralmente no idioma latino “Por esto Nos trabalhamos de fazer hũa decraraçom em cad’hũa ley e na grossa e no bartalo que de sobrello he escripto”16.
Com o propósito exposto foram mandados produzir dois livros que reunissem o postulado considerado essencial para as práticas jurídicas empreendidas pelos que, também eles por faculdade régia, asseguravam funções adstritas ao desembargo e ao despacho de sentenças e de feitos “mandamos aos nossos desembargadores que per aquella decraraçom façam liurar os fectose dar as sentenças agora per os fectos que per dante elles correrem que caibham nas leix e títolos que em esses dous liuros que uos lla mandamos som contheudos”17.
Ambos os exemplares passariam, por determinação régia, a estar disponíveis, para consulta na Chancelaria da Cidade “e uos poeem estes liuros Na Camara desse Conçelho”18, com acesso limitado aos lídimos intervenientes “nom os leixees veer a njnguem saluo aaquelles que fectos ouuerem ou a seus procuradores”19. Por questões tanto de segurança, como pela importância do conteúdo que encerravam, estavam presos “per hũa cadea bem grande e longa”20 e o manuseamento seria efetuado na presença do escrivão da Câmara “sse teuerem dauer alguuns fectos Em esto seJa presemte o escripuam da dicta camara”21.
A “dita camara” de Lisboa contaria, a partir de 18 de abril de 1426, com um recurso subsidiário de direito, “assi o Julgaae pella guissa que he escripto”22 que agregava um conjunto significativo de disposições que sustentavam a regulação jurídica de feitos e de sentenças.
Encontre este e outros documentos relacionados com a temática na base de dados do Arquivo com recurso às palavras-chave justiça, direito, sentenças, feitos, desembargo.
Adelaide Brochado
Dezembro 2022
Arquivo Municipal de Lisboa - Histórico
1 O fundo arquivístico da Câmara Municipal integra na secção Chancelaria Régia, um conjunto significativo de livros de registo de sentenças para os períodos Medieval e Moderno. Arquivo Municipal de Lisboa (AML), Chancelaria Régia, Livros de registo de sentenças (séculos XV-XVIII).
2 Sobre fontes de direito (lei, costume e estilo) e questões suscitadas pela aplicabilidade dos ditames do direito subsidiário veja-se, entre outras opções passíveis de compulsão, SILVA, N. J. E. G - História do Direito Português: Fontes de Direito (3.ª ed. revista e atualizada). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 311-332.Veja-se também, sobre a aplicabilidade da lei e a evocação do costume, entre outras fontes do AML passíveis de arrolar, o registo da carta régia de 18 de dezembro de 1393, na qual D. João I determinava aos juízes da cidade de Lisboa que, conforme uso e costume, não lhes competia mandar prender ou soltar os oficiais do concelho que errassem ou usassem de negligência nos seus ofícios. AML, Chancelaria Régia, Livro 1.º de D. João I, doc. 61, f. 72-72v.
3 SILVA, Germano Marques da – Justiça, liberdade, direito e ética: diferença na unidade. Lisboa: Revista da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, vol. XI, tomo 1, p 6. A matriz da definição de justiça que remonta a Ulpiano (jurisconsulto, séc. III) é aceite e divulgada na Medievalidade, entre outros autores coevos, por São Tomás de Aquino. Sobre este assunto veja-se CHORÃO, Mário Bigotte – Introdução ao Direito. Coimbra: Almedina, 1989, vol. I, pp. 39-48.
4 AML, Chancelaria Régia, Livro dos pregos, f. 216.
5 Tanto a ordenação geral como as ordenações direcionadas para a Câmara de Lisboa podiam, por determinação régia, não ser observadas, sobrepondo-se a potestas régia, ao estatuído. São inúmeros os documentos reunidos nas secções Chancelaria Régia e na Chancelaria da Cidade que nos evidenciam este tipo de primado decisório mediante o recurso à expressão “sem embargo de ordenação em contrário”. Veja-se, entre outras fontes passíveis de enunciar, o registo da carta régia de 6 de novembro de 1404, na qual D. João I determinava ao corregedor e juízes da cidade de Lisboa e a todas as justiças do reino que, sem embargo de ordenação em contrário, permitissem a todos os mancebos e mancebas e serviçais que pretendessem ir morar e servir na cidade e termo de Lisboa, pudessem fazê-lo sem serem constrangidos por qualquer admoestação ou aplicação de medidas punitivas. AML, Chancelaria Régia, Livro 2.º de D. João I, doc. 12, f. 13-13v.
6 AML, Chancelaria Régia, Livro dos pregos, f. 216.
7 Sobre o recurso ao direito justinianeu no reino de Portugal, veja-se CAETANO, Marcello – História do Direito português (sécs. XII – XVI): subsídios para a História das fontes do Direito em Portugal no séc. XVI. Lisboa: Verbo, 2000, 4.ª ed., p. 339-349.
8 Arquivo Municipal de Lisboa, Chancelaria Régia, Livro dos Pregos, f. 216.
9 Ibidem.
10 Ibidem.
11 Ibidem.
12 Arquivo Municipal de Lisboa, Chancelaria Régia, Livro dos Pregos, f. 216.
13 Ibidem.
14 Ibidem.
15 Sobre competências de oficiais de justiça veja-se, entre outros exemplos passíveis de compulsar, a carta de mercê de 26 de abril de 1386, na qual D. João I estipulava ao Concelho de Lisboa as competências jurisdicionais para os juízes dos ovençais, dos judeus e dos órfãos. AML, Chancelaria Régia, Livro 1.º de D. João I, doc. 13, f. 23-23v.
16 Arquivo Municipal de Lisboa, Chancelaria Régia, Livro dos Pregos, f. 216.
17 Ibidem. Entre outros oficiais de justiça que asseguraram funções no Concelho de Lisboa, veja-se o caso de Afonso Martins, corregedor, que a 19 de dezembro de 1391, é proibido de mandar prender os homens bons da cidade de Lisboa por agravo de ausência ou negligência nas demandas. AML, Chancelaria Régia, Livro 1.º de D. João I, doc. 48, f. 61-61v.
18 Arquivo Municipal de Lisboa, Chancelaria Régia, Livro dos Pregos, f. 216.
19 Ibidem.
20 Ibidem.
21 Ibidem.
22 Ibidem.