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Detalhe

Com Quase Nada

100 anos da Declaração dos Direitos da Criança

Com quase nada, 2000 (imagem extraída aos 57'37'')

Assinalamos os 100 anos da Declaração dos Direitos da Criança com a divulgação deste documento videográfico do acervo do Arquivo Municipal de Lisboa – Videoteca. A declaração, adotada em 1924 pela Assembleia da Sociedade das Nações também conhecida por Liga das Nações, foi um ano antes redigida pelo Conselho da União Internacional de Proteção à Infância – Save The Children International Union. Igualmente denominada Declaração de Genebra foi posteriormente desenvolvida e proclamada como Declaração Universal dos Direitos da Criança no dia 20 de novembro de 1959 pela Organização das Nações Unidas, sucessora da Liga das Nações, afirmando no seu preâmbulo que

“a humanidade deve dar o melhor de si mesma à criança”.

A atroz desigualdade económica e social que persiste no século XXI é a principal causa da violação dos princípios da Declaração, sobressaindo de forma cruel os milhões de crianças em todo o mundo que estão atualmente em situação de fome extrema e subnutrição agravada. Entre os vários direitos fundamentais, o princípio 7.º estipula o direito a brincar, e é aqui, não obstante, as enormes carências e infindáveis fragilidades que a criança desfavorecida, inerente ao seu ser, nos surpreende ao não desistir de brincar. É nesta ótica que o documentário Com Quase Nada nos toca, envolve e atropela. Com Quase Nada é uma maravilhosa homenagem à criança, merecendo a honra de integrar atualmente o Plano Nacional de Cinema. 

O filme foi idealizado pelo artista plástico Carlos Barroco, apaixonado por brinquedos artesanais e pela cultura cabo-verdiana e contou com a correalização de Margarida Cardoso, realizadora com reconhecido percurso no cinema português. A Videoteca Municipal de Lisboa em boa hora se associou à produção do filme, no âmbito da sua política de apoios ao cinema e aos audiovisuais. O documentário foi exibido em diversos festivais de cinema nacionais e internacionais e obteve vários prémios, destacando-se o prémio para 'Melhor Documentário Vídeo' no 'Festival Caminhos do Cinema Português' em Coimbra no ano de 2001.

O filme partilha a paixão do realizador Carlos Barroco ao mergulhar no universo das crianças cabo-verdianas. Rodado nas ilhas de São Vicente, Santo Antão e Fogo, o documentário é igualmente um retrato da cultura de Cabo Verde. Diz o provérbio que “a necessidade aguça o engenho”, no entanto, a “necessidade” das crianças neste filme é uma realidade sufocante. A estrutura narrativa, desprovida de voz-off, opta maioritariamente por um cinema de observação. As necessidades básicas das crianças cabo-verdianas são evidentes e, embora comunicadas quase sempre de forma não verbal, estão inteiramente presentes ao longo de todo o filme. No entanto, o mote está no ato de brincar da criança que se inicia no momento da construção dos seus próprios brinquedos. Por outro lado, os adultos que surgem no filme são retratados do ponto de vista da sua ligação à infância, não só construindo brinquedos, como brincando, contando histórias e fazendo música, ou seja, a narrativa revela a importância que tem a infância na edificação da personalidade de cada ser humano.

O documentário foi rodado com reduzidos meios de produção e a imagem, a cargo de Lisa Hagstrand, foi concebida com uma câmara de vídeo de formato Mini-Dv, facto que resultou numa diminuta resolução da imagem final do filme. Contudo, a força do filme está na relação que estabelece com o espectador. A operação de câmara quase sempre “realizada à mão” e executada ao nível do olhar das crianças possibilita um efeito de proximidade convidando o espectador a entrar no mundo das crianças e a ser, ele próprio, uma criança. O sucesso do filme assenta na sua universalidade, na forma como mostra a realidade, na sua sinceridade e doçura.

As crianças presas à sua condição social e económica, elevam o ato de brincar a uma forma de libertação, os brinquedos são o resultado dessa vontade assumindo-se como verdadeiros e surpreendentes objetos de arte, elaborados a partir do lixo e do desperdício. Filmados com planos pormenor e com variações de escala, misturam-se com a realidade quotidiana, uma metáfora de um mundo em potência. Como exemplo, a sequência em que uma criança conduz o seu autocarro de brinquedo no meio do trânsito da cidade do Mindelo.  A brincadeira é levada a sério, como forma de aprendizagem e educação, ou se quisermos, como meio de interpretação do mundo dos adultos pelas crianças através da imaginação. A única entrevista formal é dada por Leão Penedo, professor cabo-verdiano que faz um contexto da realidade da criança no arquipélago, as restantes interações com as personagens ocorrem naturalmente no fluxo narrativo, na sequência de uma câmara móvel que viaja por diferentes locais e contextos sociais, entrando também ela na brincadeira.

O peso da insularidade, da pobreza, do irremediável, do destino certo é intercalado no filme com momentos de criatividade, alegria e imaginação das crianças. Os seus sonhos estão vivos, mas quase todos anseiam pela fuga para outro país. A consciência das crianças da sua própria condição é dilacerante, sempre com a emigração no horizonte e a esperança de partir para uma vida melhor.

Fernando Carrilho
Junho 2024
Arquivo Municipal de Lisboa - Videoteca


Webgrafia

Declaração Universal dos Direitos da Criança, Direção Geral de Educação [consult. 2024-05-17 14:57:02].
Plano Nacional de Cinema, Dossiês Pedagógicos [consult. 2024-05-20 14:00:05].