Detalhe
Crime de lesa-majestade
Cópia rubricada e autenticada do decreto de D. José I de 9 de dezembro de 1758 que, na sequência da tentativa de regicídio de 3 de setembro desse ano, determinava medidas para a captura dos que haviam intentado no crime de lesa-majestade e promulgava um conjunto de determinações extraordinárias para que o aparelho administrativo de suporte às medidas de aplicação de justiça fosse legitimado na sua esfera de atuação.
Este mês evocamos um documento da Chancelaria Régia integrado no Livro 11.º de consultas e decretos de D. José I (1749-1759), que evidencia ditames de excecionalidade nas práticas diárias do expediente do Senado da Câmara de Lisboa, tanto pela singularidade da matéria que o enforma, como pela configuração dos registos de teor relacionado que, no imediato, foram produzidos e acumulados no âmbito das competências da administração camarária1.
Trata-se do assento da cópia rubricada e autenticada de um decreto de D. José I, promulgado a 9 de dezembro de 1758 que, na sequência da tentativa de regicídio de 3 de setembro desse ano, determinava medidas para a captura dos que haviam intentado no crime de lesa-majestade, e promulgava um conjunto de determinações extraordinárias de forma que o aparelho administrativo de suporte à execução da justiça fosse acometido de legitimação reforçada na sua esfera de atuação2.
Para que que a intencionalidade política relativa às diligências a serem tomadas contra o “horroroso atentado”3, perpetrado por aqueles que se haviam atrevido a “machinar entre si, com diabólicos intentos, uma conjuração tão sacrilega e tão abominavel”4 fosse tornada pública, foi estipulada a afixação, em locais comuns, de um número significativo de exemplares impressos do diploma5.
Com esse propósito, são remetidas ao Senado da Câmara de Lisboa, na mesma data, orientações políticas a decretar-lhe que observasse com força de lei todas as cópias exaradas nesse conspecto e às quais se daria “tanto crédito como ao proprio original”.6
O diploma divulgado espelhava o relato régio, na primeira pessoa, da tentativa de regicídio, circunscrevendo-a no tempo e no espaço “pelas onze horas da noite, ao tempo em que eu sahia da porta da quinta chamada a do Meio, para passar pelo pequeno campo que a separa deste palacio da minha residência”7 e circunstanciando-a num conjunto de pormenores respeitantes à ação efetivada por “três dittos conjurados, montados a cavallo, perto da referida porta, encobertos com as casas que a ella se seguem”8, que “descarregaram, com infame e execranda aleivosia sobre o espaldar da carruagem que me transportava”9.
São ainda referidos tanto os meios usados na operacionalização da “execranda conjuração”10, “três bacamartes ou roqueiras tão fortemente carregadas de grossa munição”, como o impacto provocado pela sua utilização “ainda errando um delles fogo, fôram bastantes os dois que o tomaram”, para fazerem no espaldar “duas brechas esphericas, de disforme grandeza”11.
A exposição remete-nos, também, para uma alegada intervenção divina como justificação plausível para que, perante as circunstâncias descritas, D. José I tivesse conseguido sobreviver “se a minha real vida não houvesse sido positivamente preservada por um visivel milagre da mão omnipotente, entre os estragos daquelle horrorosíssimo insulto”12. O mesmo tipo de argumentação é-nos evidenciado pelos vereadores da cidade de Lisboa na sessão deliberativa de 19 de dezembro, dez dias após a emissão do decreto de D. José I, na qual expressaram o repúdio pela “infame conspiração”13 atribuindo ao “Supremo, e Divino Rey do Ceo” com “Seu omniomnipotente braço”, ter “prodigioza, e positivamente”salvo, “a importante vida de Sua Magestade”14.
Nesse âmbito, a consulta do Senado da Câmara de Lisboa, de 19 de dezembro de 1758, incluía o assento da Vereação para que se dessem “infinitas graças”15 fazendo-se, para o efeito, “publica demonstração do Seu Cattholico agradecimento, buscando humildemente e devotamente a Deos Nosso Senhor”16. Nesse intuito é proposta a realização, no dia três de setembro de cada ano, “emquanto durar o mundo”, de uma missa cantada na Igreja de Santo António dos Capuchos, “havendo Sermão e Te Deum Laudamus tudo com a Solemnidade possível”17.
Com o objetivo de viabilizar o ato solene, o Senado comprometia-se, por um lado, a assistir à solenidade “no tempo em que se levantar a Deos se pondo o Tribunal de joelhos”18 e, por outro, a custear a iniciativa com a oferta de 40 000 réis “Com o destino de se aplicarem á Sera que alumiar ao Santissimo Sacramento”19.
Sobre matéria relacionada incidiram, ainda, as representações do juiz do Povo, António Rodrigues de Almada, que em seu nome e no da Casa dos Vinte e Quatro, expressou “com muitas lagrimas”20 o pesar e a repulsa contra um ato de que não havia “exemplo na fidelidade portuguesa”21 e requereu que, quando os culpados fossem identificados e capturados, fossem “desnaturalizados, e declarados por Peregrinos, Vagabundos”22. A súplica foi deferida e a 17 de janeiro de 1759 era registada no Senado da Câmara de Lisboa a sentença proferida pela Junta da Inconfidência, junto com uma relação dos réus que haviam sido dados como “a nenhuma sociedade civil pertencentes”23, e “privados com a naturalidade, e denominação de Portugueses, de todos os privilégios e honras de que indignamente gozarão como naturais deste Reino”24.
A sentença da Junta da Inconfidência, presidida por Pedro Cordeiro, regedor da Casa da Suplicação, viria ainda a pronunciar-se sobre o confisco de bens dos sentenciados conforme previsto na ordenação geral do reino para uma tipologia de crimes que “Barbara e sacrilegamente”25 ofendiam“todos os principios mais sagrados dos direitos divino, natural, civil e patrio”26.
Adelaide Brochado
Setembro 2024
Arquivo Municipal de Lisboa | Geral e Histórico
1 Sobre as competências jurisdicionais do Senado da Câmara de Lisboa, veja-se o estatuído no “Regimento do Principe D. Pedro, dado â Camara de Lixboa”, a 5 de setembro de 1671. Arquivo Municipal de Lisboa (AML), Chancelaria Régia, Livro 2.º de consultas e decretos de D. Pedro II, f. 4-15. Em 1758, o aparelho administrativo periférico era, do ponto de vista jurisdicional, acometido para a “pluralidade, autonomia e autorregulação” SUBTIL, José Louzada. - Arqueologia do poder: do Antigo Regime ao Liberalismo (1640-1865). Lisboa: Universidade Autónoma de Lisboa, 2023. pp. 41-42. Sobre o estatuto jurídico-administrativo da Câmara de Lisboa veja-se também FERNANDES, Paulo Jorge - A organização municipal de Lisboa. In C. Oliveira (dir.), História dos municípios e do poder local: dos finais da Idade Média à União Europeia. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996. p. 103.
2 Tratando-se de “crimes de tanta atrocidade e prejuízo público” e para que fossem agilizadas as medidas conducentes à “prisão dos réos”, foi determinado, sem excecionalidade prevista, que em todas as circunscrições administrativas se fizessem cumulativas todas as jurisdições dos magistrados do reino. AML, Chancelaria Régia, Livro 11.º de consultas e decretos de D. José I, f. 185v. Sobre tipologias de crime e configuração de penas na Lisboa setecentista veja-se ALVES, Sílvia - Punir e humanizar: o direito penal setecentista. Rio de Janeiro: Editora D’Plácido, 2019.
3 AML, Chancelaria Régia, Livro 11.º de consultas e decretos de D. José I, f. 185. A ordenação geral do reino previa como crime de lesa-majestade “traição cômettida contra a pessoa do Rey, ou seu Real Stado” e fixava como pena para quem o intentasse “morte natural cruelmente”, sendo todos os bens dos culpados “confiscados para a Côroa do Reino”. Ordenações Filipinas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1985. p. 1153-1154.
4 AML, Chancelaria Régia, Livro 11.º de consultas e decretos de D. José I, f. 185.
5 Tudo indica que, conforme uso e costume, os lugares comuns eram os locais com maior probabilidade de concentração de gentes, como estalagens, casas de pasto, tabernas e estabelecimentos públicos similares ou ainda em algumas unidades orgânicas adstritas à Câmara de Lisboa, como foi o caso da “casinha dos almotacés”, onde, na respetiva porta, o Senado mandava afixar editais para que não houvesse, para as matérias publicitadas, “falta nem escusa”. AML, Chancelaria da Cidade, Livro 3.º de assentosdo Senado, f. 158v. A designação “Casinha” é-nos evidenciada nas consultas da Câmara de Lisboa de 5 de fevereiro e de 18 de março de 1634, com correspondência ao local, a casa, onde os almotacés efetuavam audiências.
6 AML, Chancelaria Régia, Livro 11.º de consultas e decretos de D. José I, f. 177. As cópias impressas de ambos os decretos promulgados a 9 de dezembro de 1758 eram legitimadas pela aposição de um “rubricado” pela “real mão”, adquirindo, em observância do estatuído, valor jurídico, ficando todos os exemplares produzidos nessa configuração, confirmados e autenticados “sem embargo de quaesquer leis, disposições, ou costumes contrários. AML, Chancelaria Régia, Livro 11.º de consultas e decretos de D. José I, f. 185-185v.
7 AML, Chancelaria Régia, Livro 11.º de consultas e decretos de D. José I, f. 185.
8Ibidem.
9Ibidem.
10Ibidem.
11 Segundo Eduardo Freire de Oliveira “Depois da publicação deste decreto foi a referida carruagem posta em exposição na cocheira do paço da Ajuda”. Oliveira, Eduardo Freire de – Elementos para a história do Município de Lisboa. Lisboa: Typographia Universal, 1943. V. XVI., p. 378.
12 AML, Chancelaria Régia, Livro 11.º de consultas e decretos de D. José I, f. 185.
13 AML, Chancelaria Régia, Livro 5.º de registo de consultas e decretos de D. José I, f. 165.
14Ibidem.
15Ibidem.
16Idem, f. 165v.
17Ibidem.
18 Ibidem.
19Ibidem.
20 AML, Casa dos Vinte e Quatro, Livro dos termos da Casa dos Vinte e Quatro, f. 3v.
21Ibidem.
22Ibidem.
23 AML, Chancelaria Régia, Livro 11.º de consultas, decretos e avisos de D. José I. f. 187v.
24Ibidem.
25Idem, f. 185.
26Ibidem. Por determinação régia de 9 de dezembro de 1758, Pedro Gonçalves Cordeiro Pereira, regedor da Casa da Suplicação, foi nomeado juiz da Junta da Inconfidência. Ibidem. Sobre questões relacionadas com Direito Civil, Natural, e Pátrio veja-se SILVA, Nuno, Espinosa, Gomes da – História do Direito Português: fontes de Direito (3.ª ed. Revista e atualizada). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2000.