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Detalhe

Exposição Homenagem a Natália Correia

Voz de Natália para dizer Basta!

Exposição: Homenagem Nacional a Natália Correia, 1993 (imagem extraída aos 31' 47'')

Exposição Homenagem a Natália Correia, foi produzido pela Videoteca Municipal de Lisboa, em 1993, ano da morte da poeta (como preferia que a chamassem) e dramaturga, de quem se comemora este ano o centenário de nascimento e as três décadas do seu falecimento inesperado. Diversas edições literárias em antologias e biografias, e edições musicais em concertos e fonográficas, mas também académicas, em colóquios e iniciativas escolares, celebram agora a sua vida e obra, dando voz aos seus poemas, e rememorando a resistência antifascista e libertária que assumiu publicamente desde 1945, então com 22 anos, ao integrar as listas da criação do Movimento da Unidade Democrática (MUD), movimento que se assumiu como opositor ao regime.
 
Mulher de um talento tão pujante quanto a sua coragem, Natália Correia desafiou o ambiente conservador, fascista, machista, hipócrita e amedrontado da época. Condenada a três anos de prisão suspensa no ano de 1966, pela publicação da famosa Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, vê-se de novo processada em 1972, quando da sua edição das Novas Cartas Portuguesas, de Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa — “as Três Marias”, levadas a tribunal por questionarem as tradições patriarcais e católicas, e os crimes à época legalizados, entre os quais a violência doméstica e o incesto. Após o 25 de Abril, Natália teme a ditadura pró-soviética, torna-se deputada do PSD para depois passar a deputada independente em 1982, contestando políticas de costumes do partido, e integrando em 1987, as listas do PRD. De si mesma, dirá em outubro de 1992, na introdução à sua última obra, onde reúne mais de 50 anos de trabalho poético, dispersos por 14 livros, 

“cumpre-me esclarecer: não sendo escassas as balas que, em poemas, disparei contra a univisualidade do mostrengo das coações fascio-puritano-pirosas, não me faltando também no arsenal as que estavam a pedir certas peneiras autoritárias com cravos de Abril na fala, não foi pelo manual de um neorrealismo, com o qual aliás sempre embirrou o meu duende libertário, que me fiz atiradora.”

Exposição Homenagem a Natália Correia, é realizado por ocasião da primeira homenagem que lhe é então dedicada no ano do seu falecimento, aos 69 anos. A partir de uma tomada de vistas sobre o retrato em grande plano de Natália Correia na maturidade, a câmara segue para os cartazes no exterior da fachada do Teatro Maria Matos, cartazes alusivos ao evento que aí decorre. No interior do Teatro, a câmara abre para Mário Soares e Maria Barroso, seguindo depois diversas personalidades da vida cultural e artística nacional, em momentos de declamação e música, ao som da guitarra portuguesa, da guitarra ou do piano.
Mário Soares, enaltece o trabalho de organização da exposição do cineasta e fotógrafo Dórdio Guimarães, que foi marido e companheiro de vida da autora. João Soares, anuncia a atribuição de um nome de rua à escritora, que numa das suas últimas noites ao regressar do Botequim com Dórdio, terá dito, “mas porque é que eu não sei o nome desta rua?”. Em testemunhos de quem a conheceu, admirou e amou, Natália Correia é “a minha amada e mestre..., “um olhar diferente de todos os olhares...”, ou “uma grande escritora, uma poetisa extraordinária...”. Dórdio Guimarães, declama poema da amada enquanto vemos a biblioteca do casal e um retrato pintado da autora enquanto jovem. Como num sonho premonitório, associado ao filme de Jean Cocteau, Sonho de um Poeta, Dórdio descreve emocionado o extasiante primeiro encontro que teve com a deslumbrante Natália, quando tinha então apenas catorze anos e já só pensava em poesia. “Demais!”, conclui com enlevo.

Vitorino de Almeida, que acompanha ao piano com veemência e ritmo os poemas declamados, enumera as qualidades dos deuses que Natália defendia: o humor, a fantasia, a alegria, e uma espantosa sensação de bem-estar na vida — “um sentido lúdico da vida”, acrescenta Dórdio Guimarães, sentado ao lado de Helena Roseta. Vitorino prossegue e ressalva quanto Natália Correia era mística. Ao que Dórdio acrescenta que ela não acreditava num deus, mas sim na divindade ou divindades, e que isso era muito dela — com efeito, a autora referira já numa entrevista a Inês Pedrosa, lembrando a infância com a escritora sua mãe, Maria José Correia, que muito novinha, ela lhe dera a ler os clássicos do pensamento libertário e que o primeiro contacto que tomara com a ordem divina não fora cristão, mas pagão. Dórdio Guimarães, expõe o quanto admirava a exigência que ela punha em tudo, quanto ela se sentia bem com as gentes mais rústicas e populares, e que quanto mais a festa fosse rústica e popular, mais ela se integrava... “a festa artificial, pomposa e dos colunáveis, ela abominava”, acrescenta. “Poderia lá ir, mas ia com uma atitude critica e irónica”, comenta. Helena Roseta adianta, “e estabelecia a confusão”; “E poderia ser até agressiva, verbalmente”, conclui Dórdio.

Várias vozes rememoram a vida da artista, também no seu cunho anti-racista, “faz falta a voz de Natália para dizer Basta! e afirmar que o português não fala só em gargantas lusas!”, e enquanto libertária, “Ajudou-nos a libertar-nos de muitos preconceitos, de muitas maneiras estreitas de ver a vida”, releva Mário Soares. Libertação que Dórdio Guimarães analisa mais a fundo: libertação de preconceitos que são tudo aquilo que impede que a poesia se manifeste. A poesia no sentido de liberdade, de afirmação, “de nos despirmos e sermos autênticos e sinceros, perante o mundo, e perante as coisas e os outros”, lembra. Mário Soares evoca a peça de teatro Pécora, levada à cena por João Mota, “fez teatro como pouca gente em Portugal!”, e continua em voz-off, sobre imagens do interior do Botequim, destacando o papel que ela conseguiu desempenhar na linha de defesa da liberdade, e provocar nas noites do Botequim, transformado em centro de resistência, por onde passava toda a gente.

Dórdio, recorda a fase do PREC, logo a seguir ao 25 de abril e que se estendeu até 1976-77, “passaram-se aqui muitas coisas, entre comas, conspirações... formaram-se governos provisórios, parte deles…” Helena Roseta, completa, “os militares de abril vinham muito aqui, combinava-se aqui muitas coisas, depois das reuniões vinha-se para aqui...” E Dórdio, remata, “e faziam-se sátiras, brincava-se com o próprio momento crucial, brincava-se, porque essa componente de humor nunca esteve dissociada”, no que é acompanhado por Helena Roseta que relembra, “sátiras ao Mário Soares, sátiras ao Ramalho Eanes, sátiras ao Vasco Lourenço, sátiras ao Vasco Gonçalves, sátiras ao Melo Antunes, sátiras ao Costa Gomes, tudo, tudo.”
A noite termina com fotos de Natália Correia, no Botequim, com amigas e amigos, em sessões de autógrafos, em casa e, por fim, todo o enorme grupo de participantes nesta homenagem nacionalii, canta em uníssono um poema de Natália, em pé, em cima do palco e em abraços. Até que o filme termina sobre fotografia da poeta a declamar.
 
Muito haveria a dizer sobre Natália Correia, uma mulher que faz falta ao país que a sua morte precoce surpreendeu. Resta a obra e o exemplo, de coragem e de irreverência que deixou em legado.
 

Ilda Teresa de Castro
Setembro 2023
Arquivo Municipal de Lisboa - Videoteca


Natália Correia, O Sol Nas Noites e o Luar nos Dias, p.28.
ii Participantes neste filme-exposição-homenagem são muitas e muitos, e a ficha técnica final dá-lhes destaque e testemunho: Dórdio Guimarães, José Luís Ferreira, Mário Máximo, Lena D´Água, Elsa Noronha, Beca Amaral, Maria Azenha, hermínia Tojal, Júlio Lello, Estrela Novais, Fernando Dacosta, António Vitorino de Almeida, Eleutéria Sanches, Isabel Cid, José Cid, Silvestre Fonseca, Duarte Brás, Pinca, Adalberto Alves, Armando Cortez, Carlos Paulo, Miguel Soares, José Manuel Mendes, Helena Roseta, Carlos Silva Pereira, Artur Bual, Figueiredo Sobral, Manuela Pinheiro, Victor Beleira, João Abreu, Ana Maria Coelho e Leonilde Costa.


Bibliografia 

BRANDÃO, Lucas - As Três Marias: o antes, o depois e o impacto das ‘Novas Cartas Portuguesas’, 29 julho 2018.
CORREIA, Natália. O Sol Nas Noites e o Luar nos Dias [poesia reunida]. Lisboa: Ponto de Fuga, 2023.
GAMEIRO, Odília Alves, Natália Correia (1923-1993), Memórias Guardadas. Silêncios e Ênfases nos Arquivos de Natália Correia e Dórdio Guimarães. Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada, 2016. Edições A&B – PDL Nº 2.
MARTINS, João Martins - Natália Correia: A mulher que foi maior do que o país, 16 março 2023, Diário de Notícias.