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Detalhe

Livro XI de Consultas e Decretos de D. Maria I

Diagnóstico e descrição do processo de conservação e restauro

Livro XI de Consultas e Decretos de D. Maria I (pormenor)
Livro XI de Consultas e Decretos de D. Maria I (pormenor)

registo no catálogo

O Gabinete de Conservação e Restauro de Documentos Gráficos do Arquivo Municipal de Lisboa tem vindo, progressivamente, a realizar o levantamento dos livros do fundo Chancelaria Régia, à guarda do Arquivo Histórico, com a finalidade de caracterizar os diferentes tipos de documentos, as suas principais formas de degradação e, como resultado, estabelecer um critério de prioridade na intervenção de conservação e restauro.

A Chancelaria Régia integra, entre outros, um conjunto de 42 livros constituídos por compilações de consultas e decretos emitidos nos reinados de D. José I, entre 1750 e 1777, e de D. Maria I, sua filha, entre 1777 e 1792. Faz parte deste conjunto o “Livro XI de Consultas e Decretos de D. Maria I” de 17851, composto por 67 documentos com datas compreendidas entre 1750 e 1785 (Ver galeria - Figuras 1 e 2). De entre os vários documentos caracterizados, este livro foi selecionado como prioritário e sujeito a um processo de restauro devido ao seu avançado estado de deterioração.

O livro agrega um conjunto de 527 fólios manuscritos a tinta ferrogálica sobre papel avergoado de diferentes dimensões (Ver galeria - Figura 3). O corpo do livro é constituído por 29 cadernos, com uma organização aleatória de fólios e bifólios2, agregado a uma encadernação em pele inteira, por meio de uma costura à portuguesa sobre cinco nervos externos3 (Ver galeria - Figura 4). As evidências da costura e dos nervos observados não refletem os nervos existentes no corpo do livro, o que demonstra que o conjunto foi submetido a intervenções anteriores.

A obra encontrava-se, assim, muito deteriorada, com problemas diversos que comprometiam a sua integridade física e química. Para esta situação contribuíram intervenções inadequadas, realizadas ao longo do tempo, com a finalidade de estabilizar o processo de oxidação das tintas ferrogálicas e devolver a estabilidade física dos fólios afetados por micro-organismos. As intervenções incluíram a reencadernação do conjunto com materiais e procedimentos diferentes dos originais e o reforço com papel translúcido em vários fólios, com um adesivo de origem animal e vegetal.  O envelhecimento destes materiais tornou o suporte original amarelecido e quebradiço, impedindo a leitura parcial e, por vezes, total dos documentos (Ver galeria - Figura 5).

O diagnóstico e as formas de degradação descritas, demonstraram, desde cedo, que o tratamento de conservação teria de ser diferenciado das metodologias tradicionais. Por norma, na intervenção em documentos manuscritos com restauros anteriores recorre-se à utilização de metodologias aquosas por imersão, tanto para a remoção de adesivos e reforços translúcidos, como para a estabilização de tintas ferrogálicas, com aplicação de fitato de cálcio4. Neste livro, os manuscritos apresentam-se estruturalmente fragilizados pela oxidação das tintas e pela ação microbiológica, acrescida do envelhecimento dos reforços translúcidos aplicados. Perante estas condicionantes, era inviável a utilização de tratamentos convencionais, o que levou à necessidade de novas abordagens de intervenção. Os novos procedimentos têm como princípio a aplicação de humidade controlada nos suportes, de forma a promover a dissolução dos adesivos e a remoção dos reforços. Embora não devolvam a estabilidade das tintas ferrogálicas, impedem a aceleração do processo de degradação, uma vez que a introdução de humidade é reduzida. Deste modo, ocorre uma distensão ligeira das fibras do papel sem que se verifique o destacamento das tintas.

Entre os vários métodos de tratamentos que pressupõem o princípio da introdução de humidade controlada, foram selecionados três com base na sua possível eficácia.  No primeiro método, utilizou-se uma membrana de Gore-Tex®5, que permite a introdução e manutenção da humidade sobre os fólios a tratar e, no segundo, a utilização de dois géis rígidos distintos6, gel Agar e Gellan Gum7, que permitem a humidificação por contacto direto com os suportes reforçados (Ver galeria - Figura 6). O terceiro procedimento, bastante diferente dos dois anteriores8, consistiu na utilização de um Cataplasma enzimático (Albertina Kompresse®) que permite a dissolução dos adesivos, que são uma mistura de amido e uma cola animal9

Relativamente aos resultados obtidos, o primeiro método mostrou dificuldade na dissolução do adesivo, cuja elevada viscosidade não permitiu a remoção do reforço em determinados fólios. As placas de géis rígidos, testadas em diferentes concentrações, apresentam resultados positivos e promissores para o tratamento deste tipo de manuscritos. Além disso, em manuscritos com uma elevada concentração de tinta ferrogálica, os géis permitem a sua absorção sem interferir na tonalidade das mesmas (Ver galeria - Figura 7). A placa de Gellan Gum tem a vantagem relativamente à de Agar Agar, uma vez que possibilita a visualização do processo de humidificação dada a sua transparência. O sistema Albertina Kompresse® revelou-se eficaz, pois alterou o índice de solubilidade do adesivo, permitindo, deste modo, a remoção do reforço e dos resíduos de cola. Este método é, de facto, a opção mais adequada, tendo em conta o nível de deterioração do adesivo e do substrato, sendo necessário, no entanto proceder a testes, de forma a avaliar a sua estabilidade a longo prazo.

Adriana Ferreira e Helena Nunes
Dezembro 2023
Arquivo Municipal de Lisboa 


1 Com o código referência PT/AMLSB/CMLSBAH/CHR/010/0104.
2 Entende-se por fólio a folha inteira de um livro e bifólio uma folha dobrada a meio. Um determinado número de bifólios ou fólios agrupados forma um caderno. Os nervos são tiras de pele ou corda, colocadas perpendicularmente ao conjunto de cadernos.
3 Por norma, os livros são constituídos por vários cadernos colocados uns sobre os outros. Neste caso, o conjunto foi unido por meio de uma costura à portuguesa, sobre cinco nervos.
4 Entre os vários estudos na área do restauro e estabilização da tinta ferrogálica destaca-se o tratamento de fitato de cálcio, que neutraliza a reação de oxidação do ferro, contendo a sua migração para as áreas adjacentes e o processo de corrosão reduzindo o perigo de perda do papel. 
5 A membrana de Gore-Tex® permite a passagem de humidade para o folio por capilaridade, através de um mata borrão embebido em água, sendo a sua evaporação reduzida pela colocação de uma folha de poliéster sobre o conjunto.
6 A utilização dos géis rígidos tem vindo a ser divulgada para a limpeza do papel, minimizando a absorção de água pelo mesmo. A absorção gradual permite a dissolução total ou parcial do adesivo e a remoção dos restauros anteriores. Pode ser preparado em várias concentrações de acordo com o grau de humidade pretendido, obtendo placas mais ou menos rígida e com níveis de transparência diferentes. Os dois geis são utilizados seguindo o mesmo procedimento: documento é colocado em contato directo com a placa de gel e, nos casos de maior fragilidade, deve ser utilizado uma folha de papel japonês como interface.
7 O Agar agar é produzido a partir de uma alga marinha e o Gellan Gum KELCOGEL CG-LA® produzido através de um microorganismo.
8 O procedimento consiste num sistema por camadas de acordo com a seguinte ordem: folio, folha intercalar, cataplasma previamente humedecido com água desionizada,  tecido impregnado com água desionizada.
9 O sistema do Albertina Kompresse® tem como princípio a libertação de enzimas presentes na sua composição até ao substrato, sem interagir com a estrutura da cellulose. As enzimas utilizadas no cataplasma são de origem microbiológica e realizam a digestão do amido, torna-o solúvel em água.