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Detalhe

Memórias da Charneca

Igreja de São Bartolomeu e o cruzeiro da Charneca: marcos da passagem do tempo

Igreja de São Bartolomeu da Charneca e o cruzeiro da Charneca, 1959
Igreja de São Bartolomeu da Charneca e o cruzeiro da Charneca, 1959

registo no catálogo

Na imagem que escolhemos para documento do mês, Judah Benoliel apresenta-nos uma praça estranhamente vazia e inóspita, marcadamente rural, ainda sem ordenamento ou arranjo urbanístico.

Neste mês de agosto, lembramos as férias na aldeia mas sem sair de Lisboa, evocando as festas dedicadas a São Bartolomeu na Charneca, uma das muitas feiras, procissões e festas de Verão que acontecem um pouco por todo o país e nos trazem memórias de sapatos empoeirados pelos bailaricos e cheiro a farturas. 

A imagem que escolhemos faz parte da coleção Benoliel, composta por cerca de 3100 imagens de Joshua Benoliel (retratando a vida social e política, o quotidiano dos últimos anos da monarquia e da Primeira República), e por cerca de 1500 imagens tiradas pelo seu filho Judah Benoliel1, nos anos quarenta e cinquenta do século XX.

Retratada por Judah Benoliel em 1959, a imponente igreja paroquial de São Bartolomeu da Charneca, construída no século XVII (possivelmente no mesmo local de uma anterior ermida dedicada ao Espírito Santo) e classificada como Monumento de Interesse Público em 2011, em conjunto com o belíssimo cruzeiro, são elementos centrais na identidade da comunidade que habita a Charneca, que hoje pertence à freguesia de Santa Clara. 

Com o impulso dado pela participação da Câmara Municipal de Lisboa no projeto europeu URBACT ACCESS – Culture for all citizens a freguesia de Santa Clara acolheu em 2021 um equipamento cultural municipal – a Quinta Alegre – Lugar de Cultura (em pleno núcleo histórico da Charneca, no Campo das Amoreiras) e vários outros projetos culturais de matriz participativa, que normalmente encontramos em zonas mais centrais da cidade.

Também o Departamento de Património Cultural deu início em 2021 ao projeto Memórias da Charneca, que integra o programa Memórias de Lisboa da Direção Municipal de Cultura, no qual o Serviço Educativo do Arquivo Municipal de Lisboa tem tido um papel ativo. 

Através da investigação em arquivos, bibliotecas e outros organismos da autarquia e do contacto pessoal no local para recolha de memórias, o projeto pretende conhecer e divulgar a história deste território e valorizar a identidade própria da Charneca pela voz dos seus habitantes.

Com a consciência que a informação produzida ao longo dos tempos pela Câmara Municipal de Lisboa sobre a Charneca, e que está guardada no Arquivo Municipal, não traduz os quotidianos, a sua história e a riqueza das tradições ali vividas, têm sido recolhidas fotografias pessoais, recortes de jornais e outros documentos impressos, pertença dos atuais e antigos habitantes do lugar. Estes documentos são digitalizados e disponibilizados no nosso catálogo, permitindo reforçar e complementar a informação disponível para consulta, estudo e divulgação deste local.

Desde maio de 2021 já foram recolhidas mais de 200 fotografias tiradas em vários locais da Charneca, documentando aspetos importantes da vida desta comunidade até então omissos no acervo do Arquivo Municipal de Lisboa, e assim também da memória da cidade. 

Na imagem que escolhemos para documento do mês, Judah Benoliel apresenta-nos uma praça estranhamente vazia e inóspita, marcadamente rural, ainda sem ordenamento ou arranjo urbanístico.

Marcando o ritmo dos dias e a passagem do tempo, à igreja sempre acorreu a população para celebrar a vida, nascimento ou morte ao longo dos séculos. Especialmente no mês de agosto, as festas de São Bartolomeu da Charneca enchiam a localidade de forasteiros que aí chegavam para assistir à procissão e participar nos festejos, que incluíam petiscos, venda de produtos e divertimentos. As «Memórias Paroquiais» de 1758 descrevem-na: «Há neste lugar hua feira cada anno, a que concorre muita gente, hua que vem a vender, outra a comprar e os mais a ver (…) dura dois dias que são vinte e três e vinte e quatro de agosto, e he livre»3.

A Feira da Charneca data provavelmente do reinado de D. João V (1712-1751) tal como muitas outras no termo de Lisboa4. Nada disso, porém, se reflete nesta imagem, onde estão ausentes as pessoas, as vivências e as tradições desta localidade.

Ainda hoje em dia, no domingo seguinte ao dia 24 de agosto sai da igreja de São Bartolomeu a procissão dedicada ao seu padroeiro. Contudo, a procissão e as festas são hoje bastante diferentes do que nos é contado pelas pessoas mais antigas da Charneca. A procissão era precedida por cavalos da G.N.R. e passava por zonas entretanto desaparecidas. Toda a freguesia era decorada a preceito com arcos de madeira pintados e bandeiras. Os andores dos santos, decorados com flores de cores diferentes e carregados pessoalmente pelos habitantes, eram acompanhados por uma grande multidão, atraída também pelo lado pagão das festas, que chegavam a durar uma semana. No recinto que se estendia pelo Campo das Amoreiras e mais além, as cavalhadas, música, comes e bebes e as bancas de venda de produtos variados são lembranças recorrentes.

A partir do documento do mês, que nos mostra a praça vazia e pode representar a muita informação que faltava ao acervo do Arquivo Municipal de Lisboa sobre a Charneca antes deste projeto, é possível ver na galeria que apresentamos algumas imagens recolhidas até agora: a procissão, turmas de alunos e professores da escola nº 66, famílias junto ao cruzeiro depois da celebração de casamentos ou batizados, a equipa de futebol do Clube Desportivo da Charneca e a Banda Musical e Artística da Charneca, entre outras. 

Este projeto ainda está em construção, mas as imagens já estão disponíveis online

Ana Brites, Filipa Ferreira e Vitória Pinheiro, com Sofia Tempero
Agosto 2022
Arquivo Municipal de Lisboa - Fotográfico | Serviço Educativo


1 Filho do fotógrafo Joshua Benoliel, Judah Benoliel nasceu em Lisboa a 23 de novembro de 1900 e iniciou atividade como fotojornalista em 1924, tendo trabalhado como repórter em jornais e revistas de referência da imprensa portuguesa até à sua morte em 1968 [em linha] [consult. 2022-07-14]

 O projeto “ACCESS to Culture for all Citizens” é um dos projetos cofinanciados pela Câmara Municipal de Lisboa na área da cultura

3 Citado por CONSIGLIERI, Carlos et. al. Pelas Freguesias de Lisboa: O Termo de Lisboa, Lisboa: CMPE, 1993-2000 Biblioteca da Educação

4 Idem