Detalhe
Muralha fernandina
Mandada construir pelo rei D. Fernando em substituição da tardo-romana Cerca Velha no ano de 1373, com o objetivo de defender a cidade de Lisboa das investidas militares castelhanas, a muralha que ficou conhecida para os tempos vindouros como “muralha fernandina” ou “cerca nova” foi, desde então, alvo de alterações e adaptações que acompanharam o ritmo de crescimento da cidade de Lisboa.
Assinalando-se neste ano os 650 anos da muralha fernandina, vale a pena direcionar o olhar para este património que testemunha a passagem do tempo e do quotidiano da população lisboeta em tempos de crise ou períodos de abundância.
Também se torna pertinente regressar à documentação existente no Arquivo Municipal, para registo e estudo da informação sobre a sua história. Testemunho das marcas que o tempo foi deixando é o documento que se apresenta como “documento do mês”, datado de 16 de maio de 1545, no qual podemos ler que D. João III autorizava, no âmbito das obras realizadas no Mosteiro da Trindade, a abertura de um postigo na muralha fernandina.
Escrito em letra humanística cursiva e em suporte de papel pela mão do escrivão Manuel da Costa, este documento está inserido na Unidade de Instalação do Livro 3º de D. João III, na Série 005 dos Livros de Reis, na Secção da Chancelaria Régia, do Fundo da Câmara Municipal de Lisboa (CMLSBAH).
Segundo o que ficou registado neste documento, o rei D. João III autorizou a reabertura de uma porta que já existira naquele sítio e a delimitação de uma azinhaga que percorria ao longo do muro da cerca, desde a porta principal da Trindade até ao mosteiro de São Roque, facilitando a circulação das pessoas. Ou seja, entre o ano da construção (1373) até ao ano de registo deste documento (1545) teria havido uma porta que entretanto fora encerrada, voltando-se agora a constatar a necessidade da sua reabertura:
“[…] mandeis loguo abrir o dito postiguo pera que fique seruemtia por elle como era amtes de os tapar porque eu o ey assy por bem […]”
Assim, com a nova porta ou postigo, os moradores das casas do exterior poderiam entrar mais rapidamente na cidade, percorrer a azinhaga e chegar ao mosteiro de S. Roque sem terem necessidade de dar uma maior volta ao muro, atingindo depois a porta de Santa Catarina, por onde se entrava na cidade. Por outro lado, os vizinhos do mosteiro beneficiariam da nova porta porque teriam acesso direto às hortas e outros espaços de além muros.
Dois anos depois das obras de melhoramento do convento da Trindade e abertura da porta na muralha, foi edificada a igreja do Loreto, junto às portas de Santa Catarina, para acompanhamento espiritual à comunidade originária da península itálica, que crescia numa Lisboa pejada de estrangeiros que ali tratavam dos seus negócios.
Documentos mais tardios, datados do período entre 01 de julho e 26 de agosto de 1682 registam o pedido de autorização do superior do convento da Trindade apresentado ao Senado da Cidade, para que o postigo da porta da cidade fosse demolido para aproveitamento da pedra nos arranjos da rua de São Roque.
Num périplo ao devir histórico desta cerca defensiva, recorde-se que, até 1373, Lisboa contava apenas com a Cerca Velha ou Moura. Os arrabaldes ficavam para lá desta cerca. O cerco militar organizado por Henrique II de Castela em 1372 deixara sérias perturbações na “cerca moura”, que se revelara insuficiente. Perante a fragilidade na proteção da cidade, D. Fernando decidiu a construção de uma nova muralha, recorrendo a impostos em dinheiro ou em prestação de tempo de trabalho nas obras de edificação. As obras realizaram-se entre 30 de Setembro de 1373 e 1375. A construção foi administrada por Gomes Martins de Setúbal, capitão, ouvidor na Corte e corregedor na cidade, com a orientação dos mestres pedreiros João Fernandes e Vasco Brás. O número de trabalhadores terá rondado os dois milhares (Santana e Sucena, 1994, 259-261).
A cerca fernandina ficou designada por Cerca Nova, em contraposição à já existente, passando a cidade a ser protegida por uma área de 103,60km2, com 5,35km de muralha, 77 torres e 38 portas e postigos (Silva, 1987, 2.ª ed.; Santana e Sucena, 1994, 259-261). Já durante a crise de 1383-1385, foi esta estrutura que impediu a entrada dos castelhanos em Lisboa, durante os quatro meses que durou o cerco no ano de 1384, como magistralmente descreveu Fernão Lopes na Crónica de el-rei D. João I.
Os panos de muralha e as suas atalaias protegeram o coração da cidade, perdendo-se a noção da sua importância à medida que as ameaças externas à cidade se foram atenuando. O certo é que ao longo do século XV os panos de muralha, as portas e as torres se conservavam: “a cerca moura, as cercas da Ribeira do tempo de D. Dinis e, evidentemente, a cerca fernandina, já sem falar do recinto da Alcáçova e dos perímetros do Castelo e do Castelejo” (Marques, 1994, 92). Paulatinamente, à medida que a função militar das muralhas foi perdendo sentido, desenvolveram-se edifícios adossados aos panos das muralhas, demolindo-se também, quando necessário, alguns dos seus componentes.
Uma gravura[1] da cidade, da coleção de Eduardo Portugal (1900-1958) permite ver o desenho da muralha fernandina desde a igreja de São Roque até à Ribeira das Naus e merece também destaque nesta comemoração. Para datas mais recentes, existem documentos fotográficos dos escassos panos de muralha que podem ser visitados; outros podem ser vistos em lugares inesperados, como espaços comerciais ou fachadas traseiras de alguns edifícios, como é o caso da ermida do Senhor Jesus da Boa Nova, no Jardim do Tabaco. Trabalhos arqueológicos têm revelado alguns panos de muralha como, por exemplo, na rua do Arsenal, onde foi encontrado bem preservado um troço de 32 metros da muralha com imbricamento com uma torre, que permitem explicar como se encontravam soluções militares face ao perigo de invasão.
Em Lisboa, como em outras cidades e vilas muralhadas, à medida que as urbes se desenvolveram e os tempos de paz se prolongaram, num primeiro momento, as populações começaram a construir as suas casas e outros edifícios adossados às suas fortificações. Primeiro, porque estavam mais próximas das portas de entrada para o centro da cidade, facilitando o seu quotidiano laboral. Segundo, porque em caso de alarme, rapidamente se poderiam refugiar no interior da cidade, assegurando a proteção face aos perigos de cerco militar ou outros. Num segundo momento, a urbanidade cresceu, esquecendo a muralha.
Desta forma, a partir de pequenos exemplos, se atesta do diversificado conjunto documental existente no Arquivo Municipal que pode trazer contributos para estudos sobre a muralha fernandina, Monumento Nacional integrado nas "cercas de Lisboa", desde 1910[2].
Luísa Martins
Agosto 2023
Arquivo Municipal de Lisboa - Geral e Histórico
[1] Arquivo Fotográfico. COL EDP – Eduardo Macedo Portugal. EDP000918. SR 004 – Fotografia artística e documental. SC PCSP – Preservação da cultura e salvaguarda do património. “Pormenor de gravura retratando a Cerca Fernandina - muralha que descia de São Roque à Ribeira das Naus”.
[2] Diário da República, 2ª Série, nº 168, de 30 de agosto de 2012, p. 30 283. Diário do Governo, nº 136 de 23 junho 1910, p. 2 165.
Bibliografia
BOAVENTURA, Inês – «Estrutura encontrada na Graça tem "caráter único" e "inequívoco valor"», 2016. Em linha: https://www.publico.pt/2016/11/11/local/noticia/estrutura-encontrada-na-graca-tem-caracter-unico-e-inequivoco-valor-1750683
MARQUES, A. H. de Oliveira – “A Cidade na Baixa Idade Média”. In: O Livro de Lisboa depois da reconquista. Coord. Irisalva Moita. Lisboa: Livros Horizonte, Expo’98 e Lisboa Capital Europeia da Cultura, 1994, cap. IV, p. 89-113.
GOMES, Leandro Freitas – Caracterização material da Muralha Fernandina de Lisboa. Dissertação para obtenção do Grau de Mestre em Engenharia Civil. Lisboa: Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade Nova de Lisboa, 2019. Em linha: https://run.unl.pt/bitstream/10362/99797/1/Gomes_2019.pdf
SANTANA, Francisco; SUCENA, Eduardo – Dicionário da História de Lisboa. Lisboa: Gráfica Europam, Lda, 1994, p. 259-261.
SILVA, A. Vieira – A Cerca Fernandina de Lisboa. Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa, 1987, vols. 1 e 2, 2ª edição. Em linha: https://geo.cm-lisboa.pt/fileadmin/GEO/Imagens/GEO/Livro_do_mes/Vieira_da_Silva/Cerca_Fernandina/AU30_P1_1-56.pdf
VALONGO, António – “Rua do Arsenal 148, Lisboa. Resultados da escavação arqueológica”. In Arqueologia em Portugal: 2017 – Estado da Questão. Coord. Editorial José Morais Arnaud e Andrea Martins. Lisboa: Associação dos Arqueólogos Portugueses, 2017, p. 1559. Em linha: https://museuarqueologicodocarmo.pt/publicacoes/outras_publicacoes/II_congresso_actas/Artigo116_ArqPort_2017.pdf