Detalhe
Os Balilla e a homenagem a Luís de Camões
Que ligação se poderá estabelecer entre Luís de Camões, poeta português do século XVI, e a juventude fascista italiana no primeiro terço do século XX? Seguramente que nenhuma afinidade os une. Separa-os cerca de 350 anos, épocas distintas, sociedades diferentes, mundividências singulares.
No entanto, em 10 de setembro de 1929, uma extensa delegação da Opera Nazionale Balilla (ONB), organização fascista paramilitar italiana de educação juvenil1, visitou Lisboa por dois dias e prestou homenagem ao poeta português, depositando uma coroa de flores no monumento a Camões, no coração da capital. Engalando a cerimónia, os Balilla foram a moldura na praça que enquadra o monumento enquanto, e em simultâneo, eram observados pela colossal figura em bronze do poeta e pelas oito figuras pétreas que circundam o pedestal2.
A delegação foi constituída por quase 1100 jovens camisas-negras, entre os quais os dois filhos de Benito Mussolini, Bruno, de dez anos, e Vittorio, de treze, chefiados por um cônsul, pelo comandante-chefe da milícia e representante do governo italiano, o general Chiappe, 40 oficiais e 14 jornalistas. Partindo de Génova, a viagem de duas semanas a bordo do navio Cesare Battisti, escalou nas cidades de Nápoles, Cagliari, Barcelona e Gibraltar, antes de Lisboa, para depois prosseguir a Palma de Maiorca e, de regresso a Itália, a Civitavecchia, um périplo espécie de prémio pela distinção dos mais valorosos, um ritual de passagem na formação dos jovens.
O documento do mês que aqui se traz à colação é uma fotografia da autoria de Álvaro Abranches Ferreira da Cunha (1901-1970), que fixa precisamente um dos momentos da demonstração de apreço dos Balilla ao autor de Os Lusíadas3.
Mas porquê a atenção ao monumento e ao poeta português?
Segundo a imprensa da época, depois de atracarem pelas oito horas da manhã no Cais da Rocha do Conde de Óbidos, os Balilla desfilaram pela avenida 24 de julho, rua do Arsenal, Praça do Comércio, rua Augusta, rua Nova do Carmo, subiram ao Chiado e pelas onze horas, já na praça “apinhada de gente”, decorreu a cerimónia em que os cadetes se espalharam em quadrângulo pela praça. Após vários discursos solenes, foi depositada uma coroa de flores com as cores de Itália na base do monumento a Camões4.
O ato de depositar uma coroa de flores num túmulo é uma expressão tangível de respeito pela honra do defunto. O formato circular da coroa remete para um sentido de continuidade e perenidade, de renovação e transição simbólica que, sem começo nem fim, evoca a eternidade da memória e o vínculo inquebrável com o presente. A própria monumentalização de Camões transmite uma recordação de preceito histórico associada ao enaltecimento dos valores pátrios e dos heróis nacionais. Sobre o pedestal, a estátua representa um Camões de pé, com a perna esquerda fletida, atitude determinada que se aproxima da representação convencional do herói destemido, de espada em punho (o guerreiro) e um livro (o saber) no peito, coroado por uma coroa de louros, imagem secular fixada no imaginário público.
A coroa de louros, de grande significado simbólico, é a mesma com que os generais romanos eram agraciados aquando das entradas em Roma após vitoriosas campanhas militares, a corona triumphalis, indicando mérito e glória5. Também Camões, na visão do escultor, era merecedor destes atributos pela grandiosidade da sua obra.
Desde o final do século XVI que Luís de Camões se havia tornado um símbolo da nação portuguesa e, três séculos depois, Almeida Garrett ou Antero de Quental mitificaram a sua imagem, moldada pelo romantismo finissecular, no imaginário popular como um símbolo da história e do destino nacional.
Os Lusíadas, obra magna escrita cerca de meados do século XVI, inscreve-se na tradição renascentista das narrativas épicas que recuavam à inspiração das celebradas obras dos poetas clássicos, como a Eneida de Virgílio (70 aC-19 aC), mas também a Odisseia ou a Ilíada de Homero (séc.10 aC- séc.9 aC).
Os Lusíadas incorpora diversos elementos paralelos à Eneida, numa interessante relação influenciada pela cultura clássica. Embora sejam distintos em contexto e cultura, a Eneida e Os Lusíadas partilham elementos épicos (atores e cenários como viagens, guerras e heróis) e mitológicos (que recorre a deus(es), ninfas, monstros, divindades e aventuras). A exploração de temas como o destino, a fé e a glória, são outros paralelos simbólicos com a epopeia que celebra as viagens dos navegadores portugueses e os feitos alcançados na Ásia, em geral, e na Índia, em particular, na edificação de um império à imagem do modelo romano. Aos Ulisses, Aquiles, Heitor ou Eneias, juntavam-se os navegadores portugueses.
Os portugueses, alegava-se, haviam superado até os feitos de Alexandre O Grande que, apesar das suas conquistas, havia falhado o objetivo de conquistar a Índia, o que os portugueses haviam alcançado. Claro que esta retórica não passava de uma miragem autoconstruída alimentada pelo quadro mental coevo, num ensejo imperial político, comercial e religioso.
Para os Ballila, 350 anos depois, Camões representava o poder da poiesis pela arte da escrita e na forma da poesia, de fixar as glórias do passado imperial de conquistas, guerras e heróis, num tecido quase mitológico de virtudes e valores, de coragem e abnegação, um desafio entre os humanos e deus(es). Esta construção mental cosia a história e o orgulho nacional, eco da Roma antiga e de uma busca por uma identidade unificada.
A Eneida conta-nos a epopeia do herói Eneias, troiano que sobreviveu e fugiu à devastação de Tróia pelos gregos. Deambulando pelo mediterrâneo, acabaria por aportar, segundo o texto, na península do que é hoje a Itália, fundando uma pequena comunidade. A obra acabaria por estar ligada à glorificação do passado e da fundação de Roma e, por isso, à procedência do império romano. Durante o período moderno, diversos monarcas europeus com ambições imperiais procuraram genealogias umbilicais com uma hipotética ancestralidade clássica, a Alexandre, a Júlio César, ou a Eneias. A projeção política do simbolismo destas pseudo genealogias encontrou expressão em múltiplas aplicações por via da palavra escrita ou do objeto visual.
A interpretação triunfalista do passado imperial e insuperável dos Romanos justificava, para o fascismo italiano, paralelos manifestos, e necessários, com os tempos presentes, (re)afirmando um direito e até mesmo uma missão de conquistar e civilizar outros povos. Na década de 1920, o fascismo italiano prestou grande atenção às epopeias clássicas que retroativa e adulteradamente, por apropriação e manipulação, providenciaram matéria de propaganda que apontava a Itália e o povo italiano a um passado (e a um futuro) glorioso. Sintomaticamente, a Eneida seria um dos textos mais traduzidos e publicados no período de Mussolini, mal interpretado e distorcido como parte de uma estratégia de propaganda ideológica, para atender aos objetivos políticos do regime6. A interpretação servia como exemplo brilhante para a “Nuova Italia” que o fascismo pretendia construir. Uma nova Itália para os novos italianos à imagem de Roma que Virgílio havia louvado e que Mussolini citava, “que os futuros cidadãos possam dizer o que Virgílio disse da Roma antiga: Imperium oceano, famam terminavit astris”7.
Afinal, também a Itália fascista procurava no tempo presente um reflexo da sua própria história, por textos literários, símbolos e signos visuais apropriados8 e restaurar uma glória associada a Roma Antiga, apenas possível pelo comando de Il Duce, também ele um reflexo do poder absoluto do dictator romano. Mussolini perseguia a ideia de uma Grande Itália, expandindo o território continental italiano com províncias africanas na Tunísia e Líbia, na costa adriática oriental, desde a Dalmácia à Albânia, no mediterrâneo, com a Córsega e Malta, e uma aventura na Etiópia, ou seja, um novo império, mesmo que construído sobre mitologias9.
No quadro da organização da sociedade e da implementação dos valores morais do Estado, a criação da ONB esteve intrinsecamente ligada à necessidade de mobilizar e doutrinar os jovens de acordo com os ideais do regime.
Balilla é um vocábulo que se julga ser calão setecentista que significaria “pequeno rapaz” ou “catraio” e ficou associado a uma personagem histórica, Giovanni Battista Perasso que, com apenas 11 anos de idade, teria espoletado uma revolta em Génova contra os ocupantes austríacos, em 1746, durante a Guerra da Sucessão Austríaca. A história poderá ser uma efabulação e não existem fontes credíveis que verifiquem a veracidade dos relatos que na época circularam e que, mais tarde, consolidaram o mito Balilla. A tradição fixou a estória do pequeno Perasso que teria atirado uma pedra a um oficial austríaco, enquanto os soldados empurravam uma peça de artilharia por uma rua lamacenta, desencadeando uma revolta que levou à expulsão da guarnição austríaca da cidade. Forjada no tempo, a simbologia psicológica do episódio transformou Perasso em Balilla, e Balilla no símbolo da luta do povo italiano pela independência e unificação. Em 1847, o poeta genovês Goffredo Mameli escrevia a letra do hino nacional de Itália, que haveria de ficar reunificada durante a década de 1860, e identificava Balilla com todas as crianças italianas (I bimbi d’Italia / Si chiaman Balilla). Cerca de 70 anos depois, o herói foi incorporado na propaganda nacionalista italiana e, para além de fazer parte da denominação da organização, integrou em referência direta o episódio setecentista de Perasso no verso inicial do seu hino: Fischia il sasso… ou, A pedra assobia…10.
Portanto, e recuperando a pergunta inicial, porquê a homenagem a Camões pelos Balilla em 1929? Foi natural que os fascistas italianos se interessassem pela figura de Camões. Os Lusíadas era a epítome das glórias portuguesas, sublimemente fixadas em verso, e Camões o elo para um passado que se pretendia renascer. Da mesma forma, a memória coletiva que Mussolini pretendia (re)construir nas décadas de 1920-1930 necessitava de se associar a uma idea, ou aparência, que suportasse os desígnios do Estado e do renascimento dele, combinado com a exaltação do novo homem futurista de Marinetti, “a ideia imperial brota do nosso sangue e dos nossos músculos futuristas, ou seja, vitoriosos, inovadores e incansáveis”11.
Neste caldo mental particular e no contexto da ascensão das ditaduras europeias entre as guerras do século XX, compreende-se então que na visita a Lisboa, os Balilla encontrassem em Camões um elo entre um passado e um presente que conferisse sentido às aspirações do fascismo italiano.
Nuno Martins
Outubro 2024
Arquivo Municipal de Lisboa | Geral e Histórico
1 Estabelecida durante o período fascista em Itália, em 1926, a ONB estava sob supervisão do Ministério da Educação Nacional, e entre os seus objetivos pretendia promover a educação física e a moral da juventude de acordo com os princípios fascistas.
2 Inaugurada em 1867, o monumento, imbuído de um formalismo romântico, é da autoria do escultor António Victor de Figueiredo Bastos (1830-1894). No pedestal figuram oito estátuas, de pedra de lioz, com 2,40 metros de altura, que representam os cronistas Fernão Lopes e Gomes Eanes de Azurara, o cosmógrafo Pedro Nunes, os historiadores João de Barros e Fernão Lopes de Castanheda, e os poetas Vasco Mouzinho de Quevedo, Jerónimo Corte-Real e Francisco de Sá de Meneses.
3 Outras fotografias no acervo do Arquivo Municipal de Lisboa realizadas na altura do evento: PT/AMLSB/EFC/000336 a PT/AMLSB/EFC/000344. Sobre a presença de dignitários do Estado português e da Câmara Municipal de Lisboa, v. Diário de Lisboa, 11/09/1929.
4 Diário de Lisboa, 11/09/1929, p. 5.
5 Também no episódio da entrada de Jesus em Jerusalém, montado num burrico, descrito nos evangelhos de Marcos e de João, representações apócrifas e posteriores, sobretudo medievais, consolidaram a representação de Jesus com uma coroa de louros, simbolismo para o triunfo da aclamação como o messias anunciado.
6 SCAFOGLIO, Giampiero - Fascism and the classics: ideological manipulation and targeted translations of the Aeneid. Classical Receptions Journal [Em linha]. V. 14, Nº 3 (July 2022), pp. 379-398. Disponível na Internet: https://doi.org/10.1093/crj/clac011
7 “O Império terminou no oceano, mas a sua fama chegou às guerras” (tradução do autor).Mussolini as revealed in his political speeches (November 1914-August 1923). London & Toronto: J. M. Dent & Sons; New York: E. P. Dutton. 1923, p. 133.
8 O fascio (em italiano) ou fasces (em latim) originário da civilização Etrusca e incorporada na monarquia romana, detinha um significado simbólico fundamental associado ao poder. Composto por um feixe de varas de madeira amarradas em torno de um machado era um símbolo de justiça e autoridade associado aos mais altos magistrados romanos. Cada vara, frágil se individualizada, no conjunto representava a força da união e harmonia, e simbolizava a autoridade que dava o direito de punir os cidadãos. O machado, forte por natureza, simbolizava a autoridade que protegia os cidadãos de ameaças. No fascismo italiano, a adoção do fascio como símbolo do Estado, repercutia o simbolismo clássico, representando o Estado uno e forte e a capacidade de punição a quem ousasse desviar-se ou contestar as suas prerrogativas. O próprio vocábulo fascismo tem origem no latino fasces, sendo os fasci, grupos políticos paramilitares nacionalistas, e os fascistas, os seus seguidores e adeptos. Mussolini integraria o termo na designação dos vários grupos políticos que fundou, os Fasci d’Azione Rivoluzionaria (1914), o Partito Fascista Rivoluzionario (1915), o Fasci Italiani di Combattimento (1919) e, por último, o Partito Nazionale Fascista (1921).
9 PASETTI, Matteo - “The rebirth of the Empire on the fatal hills of Rome”: Imperial mythologies of Italian Fascism. Revista de Historia Jerónimo Zurita. Nº 99 (2021), pp. 105-130.
10 No primeiro terço do século XX, Balilla foi ainda designação atribuída a produções domésticas como o modelo de automóvel 508 da Fiat, um avião de combate utilizado na Primeira Grande Guerra, e uma classe de submarinos construída no período entre guerras.
11 MARINETTI, Filippo Tommaso - Futurismo e Fascismo. Foligno: Franco Campitelli Editore, 1924. p. 243.
Bibliografia
MARINETTI, Filippo Tommaso - Futurismo e Fascismo. Foligno: Franco Campitelli Editore, 1924.
Mussolini as revealed in his political speeches (November 1914-August 1923). London & Toronto: J. M. Dent & Sons; New York: E. P. Dutton, 1923.
PASETTI, Matteo - “The rebirth of the Empire on the fatal hills of Rome”: Imperial mythologies of Italian Fascism. Revista de Historia Jerónimo Zurita. Nº 99 (2021), pp. 105-130.
SCAFOGLIO, Giampiero - Fascism and the classics: ideological manipulation and targeted translations of the Aeneid. ClassicalReceptionsJournal [Em linha]. V. 14, Nº 3 (July 2022), pp. 379-398. Disponível na Internet: https://doi.org/10.1093/crj/clac011