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Detalhe

O som da cidade no cinema II

7º ciclo

O 7º TOPOGRAFIAS IMAGINÁRIAS propõe que se fechem os olhos por momentos e, a partir do lugar onde foram feitos os filmes ou dos lugares que eles evocam, se descubra a nova cidade que a sonoridade de cada filme expõe.

Neste ciclo regressa-se ao tema deixado em suspenso em 2019: o som da cidade no cinema. Para tal segue uma abordagem experimental: com sessões exclusivamente sonoras, cada uma acompanhada de uma proposta de um percurso específico pela cidade contemporânea guiado pelo som de filmes da história do cinema português, desenhado e comentado por um convidado particular.

O trajeto deste programa é simultaneamente espacial e temporal: é, ao mesmo tempo, a redescoberta da sonoridade da cidade tal como é ouvida a partir de alguns lugares (alguns deles nas dobras e nas traseiras dessa cidade), e uma viagem pela história do cinema português, uma viagem que começa quando o cinema sai para a rua, revelando os locais mais esquecidos da cidade e as suas personagens mais invisíveis (com o chamado “Cinema Novo”), e segue até aos anos 2000, com filmes que continuam e expandem essa saída.

Até aqui, a experiência do ciclo TOPOGRAFIAS IMAGINÁRIAS foi sempre de redescoberta, de encontro com uma cidade ou com um filme que se achava conhecer bem, e que se transforma na ação de voltar a ser encontrado de uma perspetiva particular. Nesta edição ficou claro que a questão sonora renova esse encontro e promove a redescoberta numa modalidade perceptiva diferente: através de uma atenção dirigida ao lado mais esquecido e (precisamente) invisível dos dois termos da relação entre cidade e cinema, o som, cada sessão é atravessada por um movimento de exploração e potencia a descoberta daquilo que os sons fazem às imagens (e vice-versa), seja num filme, seja quando passeamos pela cidade.

Nesta edição Pedro Boléo Rodrigues comenta 'Os Verdes Anos' de Paulo Rocha (1963), Diogo Alvim guia a audição de 'O Fantasma', de João Pedro Rodrigues (2000), Adriana Sá ouve a cidade a partir de 'Os Mutantes' de Teresa Villaverde (1998), Tiago Mesquita Carvalho comenta a sonoridade do bairro de 'Arena', de João Salaviza (2009) e André Godinho ouve o percurso de 'Vai e Vem', de João César Monteiro (2003).

As TOPOGRAFIAS IMAGINÁRIAS 2022 foram apresentadas a 10 de novembro na Videoteca, propondo que se fechasse, por momentos, os olhos e, a partir do lugar onde os filmes foram feitos ou do lugar que evocam, se descobrisse a nova cidade que a sonoridade de cada filme expõe.

A edição contou com a colaboração do projeto de investigação 'Fragmentação e Reconfiguração: a experiência da cidade entre arte e filosofia' do Instituto de Filosofia da Universidade Nova de Lisboa - IFILNOVA/FCSH.

Um marco na história do cinema português, em particular do Novo Cinema, 'OS VERDES ANOS' (1963) de Paulo Rocha lançou um olhar original sobre as Avenidas Novas da cidade de Lisboa e tornou-se indissociável da música de Carlos Paredes.

Pedro Boléo  comenta a partir desta música as deambulações tímidas, incertas e assustadas de Júlio (Rui Gomes), o jovem aprendiz de sapateiro, acabado de chegar a uma cidade feita de betão e asfalto onde não se encaixa.

A música de Paredes é o veículo melódico, harmónico e, por vezes, dissonante de um filme cheio de silêncios, efeitos sonoros parcimoniosamente colocados – numa estética contida onde Pedro Boléo percebe já o fascínio de Paulo Rocha pelos mestres japoneses – e vozes on e off, afastadas na sua aparente solidão. No poema de Pedro Tamen, cantado por Teresa Paula, que verbaliza o tema principal de Paredes, "[e]ra o amor que chegava e partia", mas também "[e]ra um segredo sem ninguém para ouvir: eram enganos e era um medo, a morte a rir nos nossos [deles] verdes anos..." 

Pedro Boléo recorda ainda que estes eram também os “verdes anos” dos envolvidos neste filme – António da Cunha Telles, que o produziu, Nuno Bragança, que escreveu os diálogos, Isabel Ruth, que se estreava no cinema, e o próprio Paulo Rocha, que fazia a sua primeira longa-metragem e, como Júlio, viera da província, de Santo Tirso para a capital – a geração do mítico café Vá-Vá, no cruzamento da Avenida de Roma com a dos Estados Unidos da América, ponto aliás recomendado para a escuta deste episódio.

A partir das dobras nocturnas da cidade, Diogo Alvim comenta 'O FANTASMA' (João Pedro Rodrigues, 2000) e descobre nessa figura intermédia e furtiva (a do fantasma) uma imagem para aquilo que se considera perverso ou fora da norma e se procura esconder, também no território.

Diogo Alvim descobre e segue ainda essa figura intermédia ou fluída no som. Concentra-se na relação entre lixo (que Sérgio, a personagem principal do filme, recolhe) e ruído, e em como tradicionalmente este último se opõe à música, oposição diluída pela composição sonora do filme. Concentra-se também no animal e na máquina, ou na oposição entre natural e artificial, e comenta como o filme trabalha, mais uma vez, na não oposição entre esses dois mundos – e o Diogo faz-nos ouvir nas máquinas de O FANTASMA os uivos de animais ao longe ou o vento a circular num terreno vazio.

Finalmente, Diogo Alvim propõe, a partir do filme, um percurso por uma Alvalade escondida – de onde se ouve a outra, organizada e racional. Um percurso para fazer de noite.

A propósito do filme de Teresa Villaverde, 'OS MUTANTES' (1998), a artista sonora Adriana Sá comenta a maneira como o som pode ser usado no cinema, entre música e narrativa, como matéria plástica ao serviço do filme. Neste caso feito de modo magistral pelo diretor de som, Vasco Pimentel.

Convocando os estudos de Leo Braudy e Michel Chion, sobre a imagem e o som no cinema, Adriana guia-nos por alguns excertos da banda sonora deste filme, que conta a história de três jovens, Andreia (Ana Moreira), Pedro (Alexandre Pinto) e Ricardo (Nelson Varela), oriundos de famílias disfuncionais, que vivem nas ruas de Lisboa, pelo menos sempre que conseguem escapar das instituições e centros de reeducação, e andam em permanente movimento, fuga ou busca de viver de alguma outra forma que não aquela que lhes impõem.

Adriana mostra-nos, sobretudo, o modo como, neste filme, o som – que, para além dos efeitos sonoros e ambientais, recorre à música de Luigi Nono e de John Cage – consegue fazer oscilar a nossa atenção “entre a musicalidade da construção sonora e o seu significado no contexto narrativo”. A relação audiovisual cria, por vezes, como diz Adriana Sá, “uma sobreposição de espaços”, ora exteriores, ora interiores, entre a cena ou espaço de representação da história e o espaço psicológico dos personagens, numa tensão ambígua que estimula a imaginação do espectador-ouvinte. 

O zumbido reverberante e contínuo da ponte sobre o Tejo ancora o filme na cidade de Lisboa, à beira rio, junto ao Cais do Sodré, mas também faz alucinar com os personagens a vertigem e o desejo de evasão. Com uma gravação feita pela própria, no pontão, do chiar dos postes onde se atam os cacilheiros, Adriana sugere precisamente a escuta dos rumores da cidade ao Cais do Sodré onde, nos anos 90, poisavam os miúdos da rua.

A partir do filme 'ARENA' de João Salaviza, Tiago Mesquita Carvalho desenha a sua arena numa margem da cidade de Lisboa, nas redondezas da Estrada de Benfica. A esse mapa fragmentado chama geografia do risco por ser terreno de afirmação territorial e de encontros camuflados de confrontos.

Apesar de não ter crescido na Malha H da Zona I de Chelas (hoje Bairro da Flamenga em Marvila), onde ARENA foi filmado, o Tiago reconhece no filme as dinâmicas da cidade onde cresceu: as vozes que circulam de cima para baixo e de baixo para cima (os miúdos que gritam da rua e os que respondem da casa no prédio), o linguajar e as palavras ameaçadoras que afirmavam uma posição (mais do que punham em causa o corpo do outro), o som da cidade e do trânsito, lá longe, só audível do exterior dos bairros e dos seus terraços (que sublinhava que estavam fora).

Tiago descreve uma outra cidade dentro da Lisboa dos anos 90 (Lisboa que para si era apenas o nome de um mapa). Uma outra cidade não muito diferente daquela que Salaviza filma em 2009 noutra margem de Lisboa, a de Chelas.

O filme 'VAI E VEM' (João César Monteiro, 2003) é pontuado por uma viagem de autocarro minúscula: duas paragens entre a Praça das Flores e o Príncipe Real são a espinha dorsal do filme.

A viagem repete-se.

André Godinho vê nessa repetição o seu próprio movimento pelas ruas onde habita: o movimento das coisas em que reparamos quando vivemos no mesmo sítio há muito tempo. Às vezes essa viagem é acompanhada do princípio ao fim, num só plano que tem assim a duração inteira e real da acção – estratégia (a do plano ter a duração inteira da acção) que atravessa todo o filme, e não apenas essas viagens.

André Godinho identifica nessa estratégia a maneira que João César Monteiro encontrou para controlar a montagem do filme no caso de morrer antes de ele estar acabado. Apesar de isso não ter acontecido (o realizador morreu pouco depois), a iminência da morte marca o vai e vem de João Vuvu (personagem principal interpretada pelo realizador), a narrativa e algumas das entradas musicais.

Fora do autocarro, André comenta a falsidade sonora do filme (os pássaros que não se ouvem no Jardim do Príncipe Real), e o minimalismo sonoro da casa quase sempre fechada (na qual não se ouve o exterior). Descreve também a topografia imaginária do filme, feita pelos percursos sem sentido das personagens quando andam a pé entre sítios que aparecem ligados mas não o estão, na realidade – o que se poderá perceber se se tentar seguir o percurso sugerido neste mapa como se fosse uma linha (é como uma linha que aparece no filme).

Episódio para ouvir debaixo do Cedro do Buçaco, no Jardim do Príncipe Real ou na escadaria da Assembleia da República, num ir e vir pela desaparecida Freguesia das Mercês - onde o que é bom, diz-se no filme, é bom nos Champs Elysées (disse-se há 20 anos mas ainda se poderia dizer hoje e só se perdia a rima).