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Detalhe

Coração de um Bairro

Um retrato de Alcântara na década de 50 do século XX

Coração de um Bairro, 1959

registo no catálogo

Coração de um Bairro trata-se de um filme publicitário a preto e branco, produzido em formato original de 35mm, com duração de 11’15’’, rodado na freguesia de Alcântara entre os anos 1957 a 1959, realizado e produzido por Perdigão Queiroga1 e financiado pela Sociedade Promotora de Educação Popular (SPEP).

Num contexto histórico em que o cinema e o documentarismo se afirmavam como instrumentos de propaganda, utilizados tanto pelo Estado Novo como por outras entidades oficiais, a SPEP recorreu igualmente à via cinematográfica para tornar a sua narrativa mais impactante. Veja-se que em 1938, sob a supervisão do Secretariado de Propaganda Nacional (SPN) e produzido pela Sociedade Portuguesa de Actualidades Cinematográficas (SPAC), foi criado um noticiário cinematográfico – Jornal Português, impulsionado por António Ferro, que divulgava, entre outros assuntos, as obras, comemorações e atos oficiais do regime, estando ao serviço da propaganda política. Beneficiando igualmente desta conjuntura, em 1959, os Serviços Centrais e Culturais da Câmara Municipal de Lisboa, passaram a divulgar as atividades camarárias servindo-se do apoio da Radiotelevisão Portuguesa, surgindo a série – Isto é Lisboa, com o objetivo de «[…] chamar a atenção dos portugueses para as belezas, os bairros típicos, os monumentos, a história, e o pitoresco da capital […]»2. A opção pelo formato televisivo surgiu com a justificação de «[…] os assuntos da cidade beneficiarem de mais larga divulgação»3, abandonando-se progressivamente a antiga divulgação radiofónica, transmitida pela Emissora Nacional, com o título a Voz da Cidade. Com semelhantes objetivos e privilegiando de um espaço cinematográfico – o Cinema Promotora4 – para a exibição do seu filme5, a SPEP pretendia engrandecer a sua história, com vista à adesão de novos associados.

Aparentemente, a escolha de Perdigão Queiroga não foi casual, configurando-se como uma decisão deliberada e consciente por parte da direção da SPEP. Apesar de já ser conhecida a sua experiência no campo da sétima arte, nomeadamente, pelo êxito obtido em 1947 com a longa-metragem Fado, história d’uma cantadeira, protagonizado por Amália Rodrigues, supõe-se que a escolha de Perdigão Queiroga tenha sido influenciada pela sua proximidade ao regime. Perdigão Queiroga realizou a cobertura das viagens do presidente da República Craveiro Lopes, resultando diversos documentários institucionais6, colaborou também no Jornal de ActualidadesImagens de Portugal, promovido pelo Secretariado Nacional de Informação (SNI). Deste modo, a escolha deste realizador garantia que a narrativa do filme da SPEP se mantivesse alinhada com o discurso ideológico e político vigente, evitando a sua censura.

A escolha do título do filme foi desde logo eficaz. Situando a instituição simbolicamente no coração do bairro, o espectador é levado a construir, impreterivelmente, um mapa mental deste lugar, onde a SPEP surge como o centro nevrálgico, lugar de referência da vida recreativa, educativa e social, funcionando como uma espécie de marco identitário. O realizador procurou destacar não só a sua centralidade e relevância no território, mas também o seu carácter pitoresco e popular, apresentando-a como uma entidade enraizada no quotidiano das gentes de Alcântara, potenciadora de um profundo amor bairrista:

«Mas o que melhor define o amor bairrista [...] e não é de hoje, é a Sociedade Promotora de Educação Popular […]». (Queiroga, 1959, aos 6’42’’).

Porém, verifica-se que uma parte importante da história desta Sociedade foi omitida, nomeadamente, a que diz respeito à sua génese, relacionada com o Partido Republicano Português e com este movimento político e ideológico que esteve na origem da sua fundação. Importa referir que a SPEP foi fundada por republicanos, tendo sido um dos primeiros centros escolares republicanos que se constituíram na freguesia de Alcântara, destinado ao ensino gratuito de crianças e adultos. Assim, ao omitir parte da sua história, o realizador optou deliberadamente por enfatizar o seu carácter pitoresco, popular e bairrista.

Por conseguinte, ao estilo de um jornal cinematográfico de atualidades e com igual tempo de duração, Coração de um Bairro desenrola-se num tom coloquial, registando imagens cuidadosamente selecionadas da instituição e das suas atividades. Por sua vez, o território é apresentado com os seus símbolos identitários, construindo-se a imagem de um lugar com características singulares e em modernização. 

Assim, apesar de se tratar de um filme sobre a SPEP, a história da instituição é remetida para o final da narrativa cinematográfica, optando o realizador por destacar em primeiro lugar as obras do regime, dando conta do desenvolvimento urbanístico da cidade. O filme inicia com uma panorâmica de Alcântara, realizada a partir da Ermida de Santo Amaro, destacando o rio Tejo que envolve a cidade, e, propositadamente, na margem esquerda do rio, o monumento do Cristo Rei, filmado ainda em fase de construção7. A narrativa prossegue destacando os novos edifícios como o Hospital do Ultramar e o pavilhão da Feira das Indústrias Portuguesas (FIL). 

Perdigão Queiroga prossegue destacando os símbolos emblemáticos da freguesia, filmando o Estádio da Tapadinha – campo do grupo de futebol Atlético Clube de Portugal, não esquecendo os edifícios fabris que marcavam de forma indelével a paisagem ocidental da cidade, expoentes máximos da Lisboa proletária, assinalando o vigor industrial da capital. Neste sentido, descreveu ao pormenor algumas fábricas locais, registando os seus processos de laboração e divulgando o número exato de operários e a moderna maquinaria. Na área dos transportes destacou a companhia de navegação – Sociedade Geral de Comércio Indústria e Transportes (S.G), e as suas oficinas de construção naval; na área alimentar, a Refinaria do Açúcar do Ultramar (SIDUL); no sector da transformação destacou a fábrica CUF (Companhia União Fabril), que na unidade de Alcântara se especializou na produção de sabões, óleos vegetais e velas de estearina.

O filme Coração de um Bairro foi identificado na sequência do trabalho arquivístico e de investigação com vista à salvaguarda do espólio documental da SPEP. O desenrolar do projeto arquivístico, e, transversalmente, o estudo e a análise da documentação, permitiram identificar a obra, que se encontrava à guarda da Cinemateca Portuguesa, no seu formato original, potenciando a sua digitalização para formato Ultra HD, promovendo a sua comunicação e acessibilidade. O Arquivo Municipal de Lisboa é detentor de uma cópia que está disponível para consulta e visionamento na Videoteca, mediante marcação. Coração de um Bairro constitui um registo documental valioso para o legado da SPEP, do bairro de Alcântara e para a memória industrial da cidade de Lisboa. 

Sílvia Félix
Dezembro 2025


Perdigão Queiroga (1916-1980) estreou-se na área do cinema nos anos 30 do século XX, na Tobis Portuguesa, onde começou a trabalhar como assistente no filme O Trevo de Quatro Folhas. Durante a Segunda Guerra Mundial mudou-se para os EUA tendo trabalhado na Pathé News. Em 1946 volta a Portugal, ingressando na Lisboa Filme. Em 1958 fundou a sua produtora, a PQ Filmes – Produções Cinematográficas Perdigão Queiroga, dispondo de estúdios e laboratórios próprios. 
Revista Municipal, Ano XXI, n.º 87, 4º trimestre, 1960, p.70. Hemeroteca Municipal de Lisboa.
3 Revista Municipal, Ano XXI, n.º 85, 2º trimestre, 1960, p.51. Hemeroteca Municipal de Lisboa.

4 O Cinema Promotora esteve em funcionamento de 1930 a 1989, situando-se no largo do Calvário. 
5 Supõe-se que o filme seria exibido antes dos “filmes de fundo” programados para o cinema, no seguimento da publicidade que era contratualizada.
6 Destacam-se dois: Viagem Presidencial - Angola (1954); Viagem Presidencial ao Brasil (1957).

O Santuário Nacional de Cristo Rei foi inaugurado em 17 de maio de 1959, no filme vêm-se apenas as quatro pilastras ainda sem a escultura central - escultura de Cristo Rei. 


Bibliografia
 

Paulo, H. (2017). Imagem em movimento: o documentarismo no Estado Novo e a representação do povo (1933-1950). OpenEdition Journals, Comunicação Pública [online], vol.12, n.º 23. https://journals.openedition.org/cp/1714 
Piçarra, M. do C. (2006). Salazar vai ao cinema – o Jornal Português d\e Actualidades Filmadas, Minerva Coimbra. 
RTP Arquivos. (1970). Um dia com…Perdigão Queiroga. https://arquivos.rtp.pt/conteudos/um-dia-com-perdigao-queiroga/