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Detalhe

Cassiano Branco

A ponte que ligaria as duas margens do Tejo

Perspetiva da ponte sobre o Tejo vista do lado de Almada, 1908

O Arquivo Municipal de Lisboa tem à sua responsabilidade informação de valor incalculável para o estudo da arquitetura portuguesa. Entre outros exemplos, destaca-se a documentação de Cassiano Branco, Francisco Keil do Amaral, Ruy Jervis d'Athouguia e José Luís Monteiro, que se afirmam como fundos documentais independentes no quadro de classificação do AML, complementados com os processos de obras particulares dos projetos de arquitetura correspondentes.

O Fundo Cassiano Branco é constituído por 13.437 documentos, de que uma parte substancial, 9.350, são recortes e revistas que este arquiteto acumulou ao longo da sua vida. Encontra-se acondicionado em 109 pastas, 10 rolos e 52 caixas, de acordo com as características de cada documento. Em termos de suportes esta documentação apresenta-se em negativo de gelatina e prata em vidro, negativo de gelatina e prata em nitrato de celulose, prova em papel de revelação baritado ou sem barita, marion, ozalide, papel, tela e vegetal. Está disponível à consulta em microfilme e à distância, através do sítio web do AML, onde é possível aceder aos níveis do fundo, série, documento composto e documento simples, integralmente descritos, com as imagens associadas, sem restrições de acesso.

O arquivo particular de Cassiano Branco foi adquirido pelo Município de Lisboa em 1990. Esta documentação chegou ao AML em maços e rolos, nalguns casos acompanhados da lista descritiva do respetivo conteúdo, sendo que a ordem original se perdera, situação que, tanto quanto possível, foi corrigida. A classificação posterior foi feita a partir das tipologias arquitetónicas existentes, com o objetivo de estabelecer os diferentes projetos documentados. Desta forma a classificação é temática, encontrando-se as séries constituídas por cada um dos respetivos projetos individuais, que por sua vez englobam toda a documentação respeitante ao mesmo projeto. Estes projetos são compostos não apenas por documentação de natureza arquitetónica, como planos, cortes ou alçados, mas também por toda aquela que, à partida, não o sendo, concorre para a mesma, como recortes de imprensa, fotografia, bilhetes-postais, correspondência, etc., que, dessa forma, se encontram reunidos. A documentação de natureza privada e aquela com características técnico-científicas ou académicas foi considerada em áreas distintas, constituindo-se nestes casos séries que respeitaram as diferentes tipologias documentais existentes. 

Cassiano Branco nasceu em Lisboa, a 13 de Agosto de 1897, cidade onde faleceu a 24 de Abril de 1970. A sua prolixa obra, de grande riqueza formal, desenvolvida entre o início dos anos 20 e o final da década de 1960, afirmou-o como um dos arquitetos que mais indelevelmente marcam a história da arquitetura portuguesa da primeira metade do século XX, de que é, seguramente, um dos mais conhecidos e estudados. 

As principais obras projetadas por Cassiano Branco, sobretudo as traçadas até ao final dos anos 30, inserem-se numa geração de novos arquitetos portugueses, que incluía Cristino da Silva, Carlos Ramos, José Segurado, Pardal Monteiro, Adelino Nunes, Cottineli Telmo, Gonçalo Melo Breyner, Norberto Correia, Raúl Martins, Veloso Reis Camelo, Paulino Montês e João Simões em Lisboa; Rogério de Azevedo e M. Marques no Porto, que se afirmam no final dos anos 20 com obras revolucionárias.

Cassiano Branco foi, entre os arquitetos desta geração, aquele que produziu obra mais vasta e, sem dúvida, notável, destacando-se em Lisboa, o cinema Éden, o hotel Vitória, o stande Rios de Oliveira, o café Cristal, o plano de reintegração do Rossio, os alpendres para os Restauradores e Rossio, o plano de urbanização da exposição do Mundo Português de 1940, ou o cinema Império, mas também o coliseu do Porto, o Grande Hotel do Luso, ou o Portugal dos Pequenitos, em Coimbra.

Em 1958, com 60 anos, apresentou um dos seus estudos mais ambiciosos, que, todavia, nunca chegou a ser construído: a construção de uma ponte a ligar as duas margens do Tejo, aqui visível numa perspetiva da ponte sobre o Tejo vista de Almada, em papel, com 720 x 655 mm.

O primeiro projeto para ligar as duas margens do rio Tejo data de 1876, quando o engenheiro Miguel Pais apresentou uma proposta para a construção de uma ponte a partir do sítio do Grilo até ao Montijo, que teria dois tabuleiros (ferroviário e rodoviário). 

Em 1888, o engenheiro americano Lye propõe-se projetar uma ponte entre a Rocha Conde de Óbidos e Almada. No ano seguinte, os engenheiros franceses Edmond Bartissol e Seyring propõem uma ligação rodoviária e ferroviária entre a Rocha Conde de Óbidos e Cacilhas, que André Proença Vieira, com base em estudos geológicos de Paul Choffat, critica. Um ano mais tarde, em 1890, uma empresa alemã, de Nuremberg, propõe a construção de uma travessia entre o Beato e o Montijo. 

Em 1958, e depois de muitas propostas nesse sentido, também Cassiano Branco apresenta uma solução para a travessia do Tejo, numa altura em que uma comissão pública considerava três hipóteses para ligar as duas margens: por túnel, por ponte, e por ponte e túnel em simultâneo. Como Paulo Tormenta Pinto assinala na obra "Cassiano Branco: Arquitectura e Artifício. 1897-1970”, Cassiano Branco defendia a opção pela ponte, propondo uma ligação a partir da zona da Lapa, numa área de terreno entre a rua de Buenos Aires, a travessa do Moinho de Vento, a rua de São Caetano e a rua do Arco do Chafariz das Terras. Este arquiteto preconizava uma artéria que passaria em ponte sobre a avenida Infante Santo, ligando o tráfego automóvel a Campo de Ourique, cujo traçado, pelos «amplos arruamentos, permitiria, nos dois sentidos, uma rápida circulação de veículos, em conjugação com autoestrada, Rotunda, Avenida da Liberdade, Marquês de Fronteira e bairros orientais da Cidade», como descreve o artigo publicado no jornal Diário de Lisboa, a 23 de março de 1858, intitulado "A ponte sobre o Tejo será a maior do Mundo e a sua estrutura em funcionamento constituirá poderoso elemento para a valorização reciproca das duas zonas do País separadas pelo grande rio”, aqui disponibilizado. Paulo Tormenta Pinto salienta que o tabuleiro partiria da cota 80, na rua Buenos Aires, até atingir o pilar de aço fixo na margem e próximo da doca grande Alcântara. Complementando esta informação, o artigo publicado jornal Diário de Lisboa indica que «Daí um salto livre de 2000 metros, atingiria o outro pilar da margem Sul e seguiria até se integrar, à mesma cota, nos terrenos situados a nascente do Forte de Almada».

O estudo de Cassiano Branco propunha uma solução integrada para a travessia do Tejo, que previa comboios elétricos e automotoras, para lá dos locais em que se situariam as estações centralizadoras e distribuidoras da margem sul do Tejo.

Na proposta de Cassiano Branco, a estátua do Cristo Rei tem um papel fundamental, como o mesmo artigo de jornal salienta, «para que nenhum ponto de vista, de qualquer lugar da margem Norte, ou ainda de quem em barco entre na barra, possa ser intercetado pelo seu pilar de aço situado na margem Sul. Consequentemente a ponte colocada a montante deste monumento, não só daria plena satisfação à solução do problema da circulação prevista nas duas margens como ainda se distância do referido monumento, para que ele possa ser observado em toda a sua escala de grandeza e significado», como se observa na reprodução da vista panorâmica da ponte sobre o Tejo, em negativo de gelatina de prata em vidro, com 9 x 12 cm, possivelmente de 1958. 

A ambição da ponte proposta por Cassiano Branco para ligar as margens do Tejo encontra-se desenvolvida no artigo do jornal Diário de Lisboa, de 23 de março de 1958, que salienta que essa seria igual à de «São Francisco da Califórnia, a Golden Gate, a maior ponte suspensa do Mundo, com um vão livre de 1282 metros entre os pilares de aço de apoio dos cabos»

A apresentação desta proposta, de monumentalismo evidente, tão cara ao Estado Novo, e à sua ideia de Império, cuja execução traduzir-se-ia na maior obra de engenharia do regime, está intimamente ao contexto eleitoral da época. De facto, Cassiano Branco apoiou a campanha à Presidência da República do general General Humberto Delgado, em 1958, chegando mesmo a ser preso pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), entre 4 e 16 de Junho de 1958, sob acusação de ter coordenado uma ação de campanha que visava a colocação de cartazes injuriosos para o governo. 

Com esta obra, Cassiano procura beneficiar dos favores de um novo governo. Durante a sua longa carreira como arquiteto, Cassiano Branco foi, quase sempre, excluído pelas fortes convicções políticas a favor de arquitetos politicamente alinhados com a ordem imposta pelo Estado Novo, de que era opositor declarado, dos concursos para lecionar na Escola de Belas Artes de Lisboa e das encomendas oficiais de maior estatuto e visibilidade. Pelo contrário, a parte mais considerável da sua obra tem origem no cliente particular e no construtor civil, maioritariamente através de encomendas de prédios de rendimentos.

A derrota do general Humberto Delgado face a Américo Tomaz, candidato da União Nacional (partido de Oliveira Salazar), sob forte suspeita de manipulação dos resultados eleitorais, destruiu o sonho de milhões de portugueses, esperançosos na restauração da democracia em Portugal, que apenas se verificará com o 25 de abril de 1974, conduzindo mesmo ao exílio do «General sem medo», em 1959, no Rio de Janeiro, e ao seu assassinato pela PIDE, em Badajoz, em 1965.

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Paulo Jorge dos Mártires Batista
Agosto 2015
Arquivo Municipal de Lisboa | Geral e Histórico


Bibliografia

AAVV – Cassiano Branco. Uma Obra para o Futuro. Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa/Edições ASA, 1991.

AAVV – Tendências da Arquitectura Portuguesa. Lisboa: Secretaria de Estado da Cultura, 1986.

BÁRTOLO, José – Cassiano Branco. Vila do Conde: Quidonovi, 2011.

CARVALHO, Maria de Jesus – Cassiano Branco – A Obra. Universidade Lusíada de Lisboa, 1988.

FERNANDES, José Manuel – Arquitectura Modernista em Portugal. Lisboa: Gradiva.

FRANÇA, José-Augusto – Lisboa: Urbanismo e arquitetura. Lisboa: Livros Horizonte, 1997.

MAIA, Maria Augusta – Cassiano Branco: Um Tempo, uma Obra, 1897-1970. Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 1986.

PINTO, Paulo Tormenta – Cassiano Branco: Arquitectura e Artifício. 1897-1970. Lisboa: Caleidoscópio, 2007.

QUADROS, António – O primeiro Modernismo Português – Vanguarda e Tradição. Lisboa: Publicações Europa-América, 1989.