Skip to main content

Detalhe

Primeira travessia aérea do Atlântico sul

A construção do padrão de homenagem a Gago Coutinho e Sacadura Cabral

Procissão de São Sebastião e Santa Ana, por ocasião do lançamento da primeira pedra do padrão de homenagem a Gago Coutinho e Sacadura Cabral,1922

registo no catálogo

A 17 de junho de 1922, Gago Coutinho e Sacadura Cabral completavam a travessia aérea atlântica entre Lisboa e Rio de Janeiro. O feito, alcançado pela primeira vez, inscreve-se na sequência das travessias oceânicas e continentais em vários pontos do planeta empreendidas ao longo da década de 1920, através de meios aéreos, alimentadas pela imaginação humana em conquistar as fronteiras do espaço aéreo. O avião era, ainda, e à época, uma invenção tecnológica recente e com bastantes limitações. O engenho humano e o sonho de voar haviam tornado possível os primeiros voos com planadores, alcançados pelos irmãos Wright, por Santos Dumont ou, ainda, por Clément Ader no período de transição entre os séculos XIX e XX. O espírito de conquista perante a adversidade e o desafio das possibilidades tecnológicas, em consonância com o quadro mental europeu dos anos 1920, a década pós-guerra marcada psicologicamente pela liberalização de costumes e pela busca dos prazeres da vida, que determinaria os vindouros "loucos anos 20”, contribuíram para a aspiração de abraçar realizações tornadas possível por novos adventos tecnológicos. Por via terrestre, as grandes explorações continentais haviam sido, durante o século XIX, o derradeiro território que desafiou a perseverança e capacidade humanas. Em breve, e algumas décadas mais tarde, a indústria humana envidaria novos esforços para inaugurar e avançar num novo território, o espacial.

Regressemos à travessia de Gago Coutinho e Sacadura Cabral. Aparentemente sem relação com o feito aeronáutico, o documento que neste mês apresentamos, é uma fotografia do acervo documental do Arquivo Municipal de Lisboa, a partir de negativo de gelatina e prata em vidro com as dimensões de 9 x 12 cm, de autor desconhecido, e mostra-nos um cortejo que se identifica como religioso nas praias de Salir do Porto, na costa atlântica, em setembro de 1922. O momento, fixado pela fotografia, revela uma fração de tempo quando a procissão se dirigia pelas colinas de areia em direção ao morro de Sant’Ana para realizar solene e oficialmente uma cerimónia com a finalidade de erguer um padrão dedicado a celebrar o sucesso da travessia atlântica.

No topo do morro, que constitui o promontório da barra que domina a baía de Salir do Porto, já existia uma pequena capela, embora em avançado estado de degradação – devido à tipologia arquitetónica, provavelmente remontará ao século XII –, dedicada ao culto de Santa Ana, mãe da virgem Maria, presença associada aos cruzados que, supostamente terão trazido para o reino o culto da santa, erigido a capela e batizado o morro. Da fotografia é possível reconhecer a constituição do cortejo religioso, encabeçado pelo transporte do estandarte, seguido de alguns noviços, provavelmente o pároco segurando a cruz, duas figuras de São Sebastião e de Santa Ana, um pálio, uma banda de música e populares. De acordo com a imprensa da época, estiveram presentes o bispo de Leiria, um representante do ministro da Marinha, outros oficiais locais e muito povo, gente local¹.

À época, num clima republicano de instabilidade política e crise financeira permanentes, o feito aeronáutico de Gago Coutinho e Sacadura Cabral surgia como um evento de glorificação nacional que ecoava um passado ligado à expansão marítima. Embora a travessia do Atlântico se tivesse concluído em três etapas, devido a avarias e contratempos que obrigaram por duas vezes à interrupção do voo e à substituição das aeronaves, ainda assim, aos olhos do poder político e da população em geral, a empresa foi saudada com clamor, cerimónias e propaganda a diversos níveis da sociedade como um advento que, entre outros, e especialmente a nível interno, se oferecia como instrumento apaziguador de problemas quotidianos e nacionais, agregando unanimemente a população, o Estado e o governo no vislumbre de um orgulho perdido e imaginado – não por acaso, as três aeronaves foram batizadas de Lusitânia, Portugal, e Santa Cruz –, imbuído do espírito da época, e que se enquadra no quadro mental do pós-guerra europeu.

Apesar da Primeira República ter privilegiado a secularização do Estado, a dimensão religiosa agregada à comemoração de feitos do Estado, ou por indivíduos com o seu patrocínio, era algo perfeitamente natural nas práticas da sociedade temporal e nas relações entre a Igreja e o Estado, profundamente marcadas pelo peso da igreja católica apostólica romana em Portugal, e que encontra raízes desde a fundação do reino. Ainda hoje, no século XXI, e apesar da Constituição portuguesa assegurar que o Estado é laico, a presença de figuras eclesiásticas em algumas cerimónias de Estado faz-se sentir, reminiscências de um vínculo cultural-religioso que reflete centenas de anos de influência e intervenção da Igreja na sociedade.

Recuperando o motivo da procissão, o cortejo religioso que se iniciou na vila, percorrendo as colinas de areia das praias de Salir do Porto, terminando no promontório sul da baía, ou seja, assinalar a futura construção de um monumento evocativo da viagem aérea de Gago Coutinho e Sacadura Cabral, tornam-se interessantes os nexos simbólicos da associação entre o sagrado e o profano.

A associação de São Sebastião, o soldado romano mártir, e de Santa Ana, mãe da virgem Maria, não é clara e presta-se a especulação. Contudo, também não é do escopo deste texto explorar esta associação. Santa Ana e São Sebastião estão, seguramente, associados a antigas tradições das vilas de Salir do Porto e de São Martinho do Porto. Da capela de Sant’ Ana sabe-se que era o espaço de oração onde as famílias dos pescadores evocavam a santa na proteção dos homens que partiam para a faina marítima. Com uma vista soberba sobre o oceano Atlântico, o promontório era também espaço privilegiado para se avistar os confins do horizonte na busca por sinais do regresso dos barcos de pesca. Ou ainda, em tempos incertos, servia como posto de vigilância para avistar embarcações suspeitas ou em dificuldades. Ao promontório encontravam-se em associação, portanto, uma dimensão sacralizada do espaço (a capela) e o exercício de atividades temporais (proporcionadas pelas vantagens naturais), combinadas na esperança e no amparo.

Num plano simbólico, a travessia do Atlântico Sul empreendida por Gago Coutinho e Sacadura Cabral, na dimensão do indivíduo pode ser evocada no sentido teológico do ato de caminhar, de percorrer um caminho, como uma missão. Da mesma forma, esse caminho – a travessia – pode-se emular no percurso do cortejo desde a vila até ao morro de Sant’Ana, e na presença das figuras dos dois santos. Por um lado, no domínio do sagrado, a presença e o transporte das duas figuras em cortejo cerimonial, facultava a difusão das suas bênçãos, que dialogava, de um ponto de vista simbólico, com a travessia atlântica que significava a realização profana de um feito tecnológico e humano que se exibia ao mundo. De outra forma, o percurso pedestre do cortejo até ao morro, comprometido num espírito de missão evangélica (radicada na incerteza devido à natureza do indivíduo), pode também ser evocativo da missão atlântica, temporal, cujos protagonistas abraçaram confiantes mas sujeitos à incerteza e probabilidades do acaso (o que, aliás, se veio a verificar). Por fim, o local escolhido para acolher o padrão de homenagem aos aeronautas, um símbolo temporal e duradouro sob a incerteza e à mercê dos elementos, o promontório sacralizado do qual a vista alcança a vastidão do oceano, o mesmo oceano e os mesmos elementos que foram superados em voo desde Lisboa até ao continente sul-americano.

Pode encontrar este documento e outros documentos na base de dados do arquivo.

Nuno Martins
Arquivo Municipal de Lisboa | Junho 2022


Lopes, M. Duarte (1922, Setembro 23) – Em S. Martinho do Porto. Ilustração Portuguesa. 2ª Série Nº 866, p. 294-295