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Fotografia

|a imagem contextualizada|, à conversa com Filipe Pinto e os autores

Filipe Pinto, artista e ensaísta conversa com Marcelino, António Bezerra e Patrícia Dias

04 dez 2025
18:30
Entrada livre

| a imagem contextualizada | é um projeto de dinamização da sala de leitura do Arquivo Fotográfico, promovendo-a como lugar de exposição e debate.
Convidamos jovens estudantes de artes para expor, e críticos de arte para um “à conversa com…”. 

Nesta edição Filipe Pinto é o convidado para a conversa com os três autores António Bezerra, Marcelino e Patrícia Dias.

Haverá alguma coisa que não seja constituída por coisas? Haverá alguma coisa que seja una e indivisível, uma coisa última, sem mais para além dela? Uma coisa que não tenha interior? Uma última superfície, um disco de Odin?

Em O Livro de Areia, Jorge Luís Borges fala de um tal fenómeno: “Já um pouco receoso, na palma da mão pus-lhe a ponta dos meus dedos. Senti uma coisa fria e vi um brilho qualquer. Depois a mão fechou-se, de repente. Eu nada disse e o outro continuou cheio de paciência, como se estivesse a falar com uma criança. – É de ouro? – perguntei. – Não sei. É o disco de Odin e só tem um lado.” A última coisa só terá um lado – será um fundo como ainda não se viu.

O conhecimento do mundo sempre se baseou na escavação, na busca de uma profundidade final; as aparências – as superfícies – iludem, diz-se. As coisas que vêm tapam as coisas que existiam; se não houvesse novo tudo se apresentaria estendido e visível, sem se necessitar de destapar, descobrir, descortinar, desvelar. Conhece-se um corpo pela dissecação e pelo raio X, por exemplo; conhece-se uma coisa pelas matérias e partículas pelas quais é composta. Na escavação pelo fundamento das coisas, os gregos pararam no átomo, elemento constituinte de todas as coisas; e indivisível, quer dizer, tão último que seria a última coisa e por isso sempre completa, íntegra e explícita. A ciência moderna mostrou afinal que o átomo tem coisas lá dentro – electrões, protões, neutrões, quarks. Crê-se ainda não se ter chegado ao fundamento das coisas, dada a selvajaria do mundo sub-atómico, com as suas leis fugidias, onde até a circunstância de algo ser visto altera o próprio estado das coisas que se tenta observar. Que última coisa não tem nada dentro? Que última coisa não tem interior, que coisa seria essa que não tem mais nada para além dela, da sua superfície? Ainda não se encontrou um disco de Odin; até agora, todas as coisas conhecidas terão pelo menos dois lados – o de cá e o de lá, frente e trás, verso e reverso, direito e avesso.

O processo de trabalho de Marcelino desenvolve-se através de aproximações sucessivas ao âmago de uma imagem escolhida – de uma imagem selecciona uma porção; amplia e volta a imprimir; do resultado selecciona uma porção, amplia e volta a imprimir; do resultado selecciona uma porção, amplia e volta a imprimir… e assim sucessivamente até a imagem resultante se confundir com a própria textura do papel que é o suporte físico da imagem. O que é imagem e o que é textura? É a textura do papel uma imagem? Fotografar e imprimir a textura do papel que se usa – esta seria uma estratégia próxima do quadrado branco de Malevitch. O que acontece numa imagem (impressa)? Tal como numa pintura figurativa, a tinta esconde-se através da imagem – se vemos a imagem não vemos a tinta; a tinta invisibiliza-se na imagem reconhecível, tal como acontece com a forma das letras e palavras neste texto. Ou vês a forma ou acedes ao significado; uma letra ou palavra lida é, na verdade, uma forma que não se vê. Ler quer dizer descartar a forma (da palavra) em benefício do seu significado. Só uma palavra ilegível será visível, só a palavra inaudível será visível. Da mesma forma, a tinta que constitui uma imagem impressa esconde-se atrás (à frente?) da imagem que dá a ver.

Com aquele processo, Marcelino como que faz a imagem se decompor, como se esta se diluísse no papel e a tinta perdesse a sua altivez característica. Marcelino deu a estas peças o título Bolor Bolor Bolor. Ora, bolor é uma espécie de estado intermédio entre a matéria viva e independente e a terra, ou seja, a Natureza no seu todo; o bolor, o podre, o putrefacto é a mastigação característica que precede a reintegração no fluxo das coisas da Natureza, tal como a ruína é o estado intermédio entre a construção humana e o retorno ao natural. Na Natureza não há morte, há apenas uma redistribuição dos átomos.

São igualmente pequenas as partículas que no espaço podem colidir com dispositivos electrónicos em estações espaciais, satélites, etc., e causar uma inversão de bits, ou seja, alterar a informação recolhida (cosmic bit flip). Sabendo disto, cientistas criaram software que tenta reverter as corrupções de código, restaurando a integralidade da informação. António Bezerra parte destas imagens recuperadas, reactualizadas, recauchutadas para propor aquela invasão de partículas cósmicas nos assuntos humanos como um dispositivo de criação de imagens1: “Através da manipulação de código, são introduzidas interferências que desestabilizam as imagens originais, gerando abstrações inesperadas.” O que quer dizer este ‘inesperadas’ no discurso do artista? As imagens resultantes deste processo não são totalmente controladas pelo artista, ou seja, dependem de acasos, erros, glitch. Trata-se de algo como uma desautorização do autor, ou da obra de arte. O autor estabelece os parâmetros para que a obra apareça, mas demite-se de controlar todo o processo. Noutras alturas, os artistas utilizavam drogas, sonhos, escrita automática ou cadavre exquis para tentar chegar a algo que não passasse pela fronteira castradora e teleológica da racionalidade. Creio que, na verdade, estas estratégias talvez tentem alcançar uma porta de entrada para as coisas do mundo sem nós. Como se, através delas, as coisas – inclusive da arte – evoluíssem naturalmente, como se fizessem parte das coisas da Natureza. Quando se preparam os dispositivos para que incluam o erro, o acaso, o fortuito na criação de obras de arte, quer-se enfim, que as coisas evoluam como se não estivéssemos por cá, como se fossem autónomas, e, olhando para o resultado, pudéssemos ter um vislumbre da mão da Natureza ou do tempo ou do Universo. É a tentativa de aceder a um mundo sem nós.

Patrícia Dias parece igualmente procurar uma imagem não desejada, quer dizer, uma imagem que pode surpreender o seu próprio autor, que não é previsível, algo nos antípodas de uma imagem de estúdio, fechada e calculada, sem acidentes possíveis – uma imagem impermeável. Porém, ao contrário de António Bezerra, onde as imagens parecem brotar precisamente do interior do próprio dispositivo – imagens que não existem cá fora, no meio do real –, Patrícia Dias tenta capturar e preservar algo que brote da situação real e física criada, da estratégia escolhida, à qual posteriormente junta “fragmentos textuais apropriados” que alargam o espectro da imagem. Apropriação, como é sabido, tem duas leituras possíveis – por um lado, significa tornar seu, por outro também se pode referir a algo que é adequado, que se coaduna. No intervalo entre cada imagem, mais ou menos abstracta, e o respectivo fragmento textual, mais ou menos adequado, o espectador encontra o seu espaço de interrogação e ensaio, que é o que todas estas três propostas oferecem.

Filipe Pinto
(o autor escreve sem seguir o acordo ortográfico)

1  Ao pensar a propósito destas imagens tratadas, lembrei-me de uma frase espantosa de Pascal Quignard, “[U]m médico enrola um pano à volta do seu pescoço para lhe pensar a ferida.” Trata-se, portanto, de propor um pensamento sobre estas imagens pensadas.

Sinopses e biografias dos autores


Arquivo Municipal de Lisboa | Fotográfico

Rua da Palma, 246
1100-394 LISBOA

Exposição patente na Sala de Leitura de segunda a sábado das 10:00 às 18:00, até 31 de janeiro de 2026.


Arquivo Municipal de Lisboa | Fotográfico

Rua da Palma, 246
1100-394 LISBOA

Exposição patente na Sala de Leitura de segunda a sábado das 10:00 às 18:00, até 31 de janeiro de 2026.

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