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Detalhe

A entrada de D. Manuel I e de D. Leonor de Áustria em Lisboa, 1521

O relatório de despesas da Câmara de Lisboa

Relatório das despesas efetuadas com os preparativos para a entrada régia de janeiro de 1521, f. 56

registo no catálogo

O documento do mês que se apresenta neste texto, é o relatório de despesas da organização da cerimónia da entrada do rei D. Manuel I e de D. Leonor de Áustria em Lisboa, em janeiro de 1521, pela celebração do seu casamento. Trata-se de um documento pouco conhecido, mas inegavelmente importante, permitindo, através das rúbricas de despesas nele assentadas e dos respetivos valores, fazer uma leitura detalhada sobre as diferentes áreas de intervenção da Câmara na cerimónia, revelando as suas etapas e festividades associadas, os oficiais e intervenientes protagonistas, bem como avaliar os custos associados em cada uma das áreas, as quantidades e qualidades dos materiais, e todos os detalhes que consumiram as verbas indicadas.

O Relatório das despesas efetuadas com os preparativos para a entrada régia de janeiro de 1521 faz parte do Livro de Festas1, que reúne um vasto conjunto de documentação relacionada com a intervenção da Câmara de Lisboa em esferas várias, e no cumprimento de ordens da coroa, na organização de cerimónias reais, eclesiásticas ou civis, entre 1486 e 16322. Dele, recorremos também a outros documentos relacionados com a entrada do casal real em Lisboa, que complementam e nos dão outras informações sobre os preparativos da cerimónia.

Realizado o acordo para o casamento em maio de 1518, consolidando a aliança com a casa de Áustria, em novembro do mesmo, D. Leonor de Áustria entraria em Portugal vinda de Saragoça3.

Recebida na raia portuguesa por uma extensa comitiva liderada pelo duque de Bragança, com cerca de duas mil pessoas, a cerimónia seguiu os protocolos estabelecidos. Em Almeirim, onde foram recebidos a «hũa legoa da villa» por «muita gente de cavallo», a comitiva foi acolhida pelos infantes, autoridades eclesiásticas e pela nobreza cortesã, maciçamente presente, sendo realizadas «grandes festas, de touros, canas, serões, & outros passatempos atté ho começo do verão»4. As celebrações foram marcadas por entretenimentos organizados pelo município com a participação da população local.

Devido a uma epidemia de peste e pela necessidade de dirimir surtos subsequentes, a entrada solene do casal real em Lisboa só ocorreria em janeiro de 1521, após meticulosos preparativos e reforço dos detalhes logísticos na atenção ao aparato cénico idealizado. Desde novembro do ano anterior que D. Manuel emitira vários despachos à Câmara, ordenando e esclarecendo um conjunto de matérias que ilustram o extremo cuidado colocado na organização da importante cerimónia5. D. Manuel I nomeou Gil Vicente6 como responsável pela conceção e supervisão dos trabalhos, conferindo-lhe ampla autoridade junto da Câmara de Lisboa para conceber e coordenar todo o programa cénico e a construção dos dispositivos necessários, incluindo cadafalsos e alegorias teatrais, podendo convocar todos os artesãos necessários para «que todo o que se ouver de fazer pratiqueis com elle e per sua ordem mandeis tudo fazer», e para que tudo estivesse pronto no prazo que se estimava, «lhe deis todo favor e ajuda que lhe comprir e mamdeis costramger todos os oficiaes de quaesquer ofycios que seja e asy servidores e pesoas que pera os ditos autos forem necesaryos de maneira que todo se posa saber fazer e acabar»7. O objetivo era claro. O monarca procurava assegurar e certificar-se de que a representação visual do programa de ideias cuidadosamente elaborado seria executado em conformidade com as suas orientações e a solenidade que se exigia para a ocasião. Em carta de 10 de dezembro, a um pedido de esclarecimento da edilidade, o monarca referia-se explicitamente aos dispositivos cénicos a serem construídos, por determinação de Gil Vicente, as «pimturas que vos mostrou e as cousas e cadafalsos que vos dise que sãao necesareos». As «pimturas» apresentadas à Câmara sugerem tratar-se dos esboços das diversas estações performativas, os tableaux vivants, ao longo do percurso urbano. Estas encontravam-se também já orçamentadas, «o dinheiro que se asy niso pode despemder»8

Outra dimensão da cerimónia, que ilustrava as relações de poder, eram as prerrogativas na distribuição de lugares, assunto sempre sensível e de extrema importância. Instado pela Câmara, a resposta de D. Manuel transmitiu a necessária confiança entre os dois poderes, «o que escreveis sobre a reparticão dos lugares pera as represemtações das nosas casas de Ginee e Imdias e vossas e dos mercadores corretores remdeiros e oficiaaes ao que vos respomdemos que em todalascousas que a nos a emtrada tocarem asy no repartir dos ditos lugares como e todo mais que se ouver de fazer façaes todo o que vos bem parecer porque o que nyso fezerdes nos o avemos por bem feyto»9.

No relatório das despesas efetuadas com a entrada do casal régio, concluído dois meses depois e datado de 16 de março de 1521, percebe-se a profundidade e diversidade do investimento financeiro. Este extenso documento sob a forma de relações distribuídas por 23 fólios e organizadas por secções que correspondem, grosso modo, a rúbricas com a descrição de itens agrupados pela sua especificidade, permite obter informações preciosas sob várias formas: as diferentes áreas de intervenção do município; os oficiais que receberam verba para comprar tecidos para vestuário e que peças de roupa foram contempladas; as quantidades, qualidades e riqueza dos paramentos e materiais utilizados nos ornamentos; a origem de objetos cerimoniais; a identificação, quantidade e qualidade de insígnias, bandeiras e estandartes encomendados; as quantidades e preços dos metais preciosos utilizados na decoração de estruturas, embarcações e vestidos; os artesãos envolvidos nos diversos trabalhos de construção e decoração de estruturas; os custos na contratação e na providência de materiais a dançarinos, músicos e atores; o número de pessoas envolvidas e o tempo de execução dos diferentes trabalhos, entre muitos outros dados. É também possível, a partir destas informações concretas, perceber outras dimensões da organização da entrada, quer de ordem espacial ou temporal, nas competências e divisões de género, na dimensão da logística de apoio com transportes, alimentação e acomodação, animais alugados, os mercadores e bens adquiridos, as diferentes áreas das artes envolvidas – entre alfaiates, fanqueiros, tintoreiros, cereeiros, pintores e outros artesãos –, a quantidade e variedade de luminárias, decorações e pinturas encomendadas, ou ainda o número e tipo de embarcações envolvidas e respetivas funções e decorações.

De acordo com o documento, o valor da despesa recenseada, que não se sabe ser total, ultrapassou os três milhões e seiscentos e quarenta mil reais10. Uma impressionante quantia, se se tiver presente que representava mais do dobro do custo da aquisição de trigo dos Açores no segundo semestre do mesmo ano11. Para prover estas despesas, D. Manuel não deixou de dar instruções à Câmara sobre a forma de suprir os gastos12

Trata-se, portanto, de um documento fascinante que merece toda a atenção pois permite aceder a dimensões menos conhecidas de um dos eventos mais marcantes da manifestação pública do poder real no século XVI europeu: as entradas triunfais régias.

Nuno Martins, Arquivo Municipal de Lisboa
Julho 2025


Arquivo Municipal de Lisboa (AML), Chancelaria Régia, Livro de Festas.
AML, idem, f. 56 a 78v.

3 Costa (2005, pp. 243-245).
4 Góis (1955, p. 89). Gaspar Correia não coincide no percurso com Damião de Góis, mas na essência das festas é semelhante. Do Crato, escreveu que a estadia se saldou por «oito dias em gramde festas e alegres canas e touros e daquy com gramdes bamqetes e reçebymentos se veo Almeyrym omde esteue algũus dyas aguardamdo que Lysboa se fyzesse prestes com seu solene rçebymento» (Correia, 1992, p. 125). Já Damião de Góis diz que se demoraram «dous dias, em q houve muitas festas, jogos, & danças» (Góis, 1955, p. 87).
5 Alguns exemplos: D. Manuel I ordena à Câmara que sejam requisitadas todas as embarcações, 15-11-1520 e 04-12-1520, AML, Chancelaria Régia, Livro de Festas, f. 39 a 40 v; D. Manuel I informa que os juízes dos órfãos devem participar na cerimónia da entrada régia, 19-11-1520, AML, idem, f. 42 e 42 v; D. Manuel I ordena à Câmara que dê roupas novas ao alcaide da cidade, 29-11-1520, AML, idem, f. 43 e 43 v; D. Manuel I esclarece a Câmara a respeito da indumentária, 03-12-1520, AML, idem, f. 45 a 46 v; D. Manuel I esclarece algumas questões colocadas pela Câmara acerca da próxima entrada régia na cidade, 10-12-1520, AML, idem, f. 47 a 48 v; D. Manuel I ordena à Câmara que faça entrega de certa quantia de dinheiro, 11-01-1521, AML, idem, f. 49 e 49 v; D. Manuel I ordena à Câmara que esclareça algumas questões de natureza protocolar, 18-01-1521, AML, idem, f. 50 e 51v; D. Manuel I ordena à Câmara que entregue certa quantia de dinheiro, 16-01-1521, AML, idem, f. 55 e 55v.
6 Gil Vicente era já responsável pela organização de eventos dramatúrgicos na corte, pelo menos desde 1502, aquando do nascimento do príncipe D. João. Durante o século XVI tornou-se prática comum os artistas, pintores ou escultores elaborarem os programas iconográficos e alegóricos que ornamentavam as cerimónias públicas para casamentos, entradas triunfais e celebrações diversas, entre monarcas, príncipes, senhores e governantes com capacidade de suportar as despesas inerentes e cujo poder justificava o investimento. Entre outros, os exemplos mais flagrantes serão: Francesco Primaticcio na corte de Francisco I de França; Ticiano, Maarten van Heemskerck, Pieter Coecke van Aelst e Jan Cornelisz Vermeyen, no Império de Carlos V; ou Hans Holbein, o Jovem, no reinado de Henrique VIII
.
D. Manuel I informa a Câmara que encarregou Gil Vicente da organização dos autos, 29-11-1520, AML, idem, f. 44 e 44v.
8 D. Manuel I esclarece algumas questões colocadas pela câmara acerca da próxima entrada régia na cidade, 10-12-1520, em Mora, AML-AH, idem, f. 47 a 48v.
Ibidem.
10 3.642.664 reais.
11 «Por conta do rei, António Borges, durante o 2.º semestre de 1521, adquiriu nos Açores 978 móios e 23 alqueires de trigo e 317 móios de cevada, por uma soma global de 1.601.970 de reais» (Godinho, 1987, p. 239), o que corresponderia, aproximadamente, a 600 toneladas de trigo e 150 toneladas de cevada. O tráfico de escravos, movimentava 7 milhões de réis por ano, entre 1520-1530, ao valor (de moda) por indivíduo de 5.000 réis. As receitas com o ouro africano geraram uma média anual, para 1490-1520, de 25 milhões de reais, com um máximo de 143 milhões de reais de 1519 a 1522. Para 1519, o orçamento total do reino foi de 111,7 milhões de reais e o orçamento do império, de 164,6 milhões de reais, v. Costa et al. (2012, pp. 105-132).
12 D. Manuel I ordena à Câmara como devem ser pagas as despesas da sua entrada, 18-11-1520, AML, idem, f. 41 e 41 v.


Bibliografia

Correia, G. (1992). Crónicas de D. ManueL e de D. João III. Academia das Ciências de Lisboa.
Costa, J. P. O. (2005). D. Manuel I. Círculo de Leitores.
Costa, L. F., Lains, P., & Miranda, S. M. (2012).  História económica de Portugal (1143-2010). Esfera dos Livros.
Godinho, V. M. (1987). Os descobrimentos e a economia mundial (Vol. 3). Presença.
Góis, D. de (1955). Crónica do Felicissimo Rei D. Manuel (Vol. IV). Universidade de Coimbra.