Detalhe
O 25 de Abril e as manifestações
Em agosto de 2024, no ano comemorativo do cinquentenário da Revolução de 25 de Abril de 1974, cumprem-se igualmente cinquenta anos sobre a publicação do diploma legal1 que regulou, pela primeira vez, o direito de manifestação, ação coletiva e mobilizadora da expressão popular que despontou com o 25 de Abril e que permanece como recurso de contestação na democracia portuguesa.
Com o golpe militar de Abril, transformado em Revolução por via da mobilização popular, a generalização da ocupação do espaço público com manifestações e comícios, meios de expressão de opinião, protesto e reivindicação, ditou a necessidade de regular o exercício do direito de manifestação. Antes dessa data, apenas se havia legislado o direito de reunião e de associação, instituídos pela primeira vez na Constituição portuguesa de 18382 e regulados por leis especiais que estabeleceram a forma do seu exercício3. A reunião em “lugar descoberto” ficaria condicionada à obrigatoriedade de participação às autoridades competentes, que eram, desde meados do século XIX, os governos civis.
Ao longo dos tempos, a legislação regulamentar sofreu poucas alterações4. Não eram permitidas reuniões em praças ou vias públicas, podendo estas ser dissolvidas, caso se desviassem da finalidade ou perturbassem a ordem pública. A legislação do Estado Novo5 acrescentou outras variantes, em consonância com as restrições impostas à oposição política, como o condicionamento das reuniões de propaganda política ou social à autorização do Governo Civil e a presença das autoridades policiais nas reuniões.
Em maio de 1974, as medidas de curto prazo do Programa do Movimento das Forças Armadas6 determinariam a liberdade de reunião, de associação e ainda a liberdade de expressão e pensamento sob qualquer forma, aplicando este princípio à permissão para formar associações políticas, possíveis embriões de futuros partidos políticos.
Em 29 de agosto desse ano foi publicado o Decreto-Lei n.º 406/74 que regulamenta, até aos dias de hoje, as regras para a realização de reuniões, comícios, manifestações ou desfiles em lugares públicos ou abertos ao público. Trata-se do primeiro diploma que menciona expressamente o direito de manifestação, que viria a ser também reconhecido na Constituição de 1976, estabelecendo uma alteração significativa ao texto constitucional, visto que os anteriores se cingiam apenas ao direito de reunião.
No texto constitucional, reunião e manifestação foram considerados direitos com afinidade7 e, desse modo, determinou-se a sua inclusão num mesmo artigo: Os cidadãos têm o direito de se reunir, pacificamente e sem armas, mesmo em lugares abertos ao público, sem necessidade de qualquer autorização (…) A todos os cidadãos é reconhecido o direito de manifestação8.
Assim, a partir de agosto de 1974, o exercício deste direito ficou sujeito aos limites e condições próprias do enquadramento democrático, referindo-se a esse propósito algumas alterações legislativas, como a substituição do dever de autorização prévia pelo dever de aviso prévio ou o fim da imposição legal da presença das autoridades nas reuniões realizadas em recinto fechado que passou a estar limitada apenas à solicitação dos organizadores.
Para assinalar a data, o Arquivo Municipal de Lisboa (AML) destaca este mês o folheto do PS (Partido Socialista) alusivo ao grande comício-manifestação de 19 de julho de 1975, que ficou conhecido como o “Comício da Fonte Luminosa”, uma das maiores ações coletivas públicas de natureza política que agitaram a cidade de Lisboa durante o período revolucionário.
O documento faz parte da Coleção de folhetos políticos coligida e organizada por José Neves Águas. Trata-se de uma coleção que abrange um período alargado de cinco décadas da história do país (1949-1986), reportando-se como tal, aos acontecimentos sociais e políticos ocorridos durante esse tempo, com especial incidência para os movimentos de oposição ao Estado Novo e para os processos revolucionário e de democratização do país.
Esta coleção integra diferentes tipologias informacionais como comunicados, manifestos, propaganda eleitoral, convocatórias, notas de esclarecimento, moções, discursos, proclamações, declarações de princípios, cartas abertas, apelos, entre outras. Relativamente à sua autoria identificaram-se organizações políticas de vários quadrantes, organizações sindicais, movimentos e organizações associativas e cívicas que por esse meio difundiam publicamente as suas atividades e posições sobre a atualidade política.
A coleção contém um conjunto importante de folhetos que incluem tanto manifestações em prol da melhoria das condições de vida e de trabalho, como manifestações partidárias, a favor e contra os governos provisórios.
O folheto do Partido Socialista em destaque apela à participação do “povo português” no comício-manifestação do PS em 19 de julho de 1975. Foi produzido no contexto do confronto entre a via revolucionária e a via eleitoral, protagonizado pelo PCP (Partido Comunista Português) e pelo PS, desencadeado pelos resultados eleitorais de abril de 1975, que reforçaram politicamente o Partido Socialista. A partir desse momento, este partido vai opor-se à aliança entre o PCP e o MFA que procurava dominar a Revolução, abandonando, em 10 de julho, o IV Governo Provisório liderado por Vasco Gonçalves, na sequência do Caso República9 e da publicação do Documento Guia Aliança Povo-MFA10.
As manifestações amplamente participadas tinham como objetivo a demonstração de força dos partidos. Os comícios de 18 de julho no Porto (Estádio das Antas) e o de 19 de julho em Lisboa, pretendiam precisamente afirmar o PS como o “representante das grandes massas do povo português”.
Em resposta a essa convocatória, o PCP e outros partidos de esquerda tentaram impedir a “marcha reacionária” através do “levantamento de barragens” à entrada de Lisboa (ver galeria de imagens). Num comunicado do Secretariado Nacional do PS11 é interessante verificar que o PS reage, invocando os preceitos legais da reunião e manifestação. Refere que “as manifestações públicas do PS são reuniões pacíficas”, que os socialistas “não abdicarão do direito inalienável da reunião e manifestação, sejam quais forem os obstáculos que forças pseudo-revolucionárias pretendam levantar” e “confia que as autoridades competentes assegurarão o respeito da lei de reunião e saberão manter a ordem pública, sobretudo através do seu braço armado – o Copcon”12.
A tentativa do PCP de impedir os dois comícios não surtiu o efeito pretendido e estes acabaram por contar com a presença de milhares de simpatizantes e militantes do PS. No comício da Alameda acentuou-se a rutura com a linha revolucionária do MFA, ouvindo-se palavras de ordem como “o Povo já não está com o MFA”13. Mário Soares, discursando por último, teceu duras críticas ao PCP e ao primeiro-ministro Vasco Gonçalves, pedindo a escolha de outra individualidade, que desse garantias de apartidarismo, para a chefia do V Governo.
O conjunto de folhetos, apresentado na galeria de imagens sobre esta determinada sequência de acontecimentos, torna possível constatar um efeito de comunicação e resposta revelado na multiplicidade de folhetos produzidos pelas entidades intervenientes, constituindo, nesse sentido, um bom exemplo da recuperação de informação proporcionada pela sistematização cronológica que presidiu à organização desta Coleção.
Raquel Ascensão e Clara Anacleto, Arquivo Municipal de Lisboa
Agosto 2024
1 Decreto-Lei n.º 406/74 de 29 de agosto.
2 Baptista, p. 26.
3 Decreto de 15 de junho de 1870 - Diário do Governo n.º 133, p. 825; Decreto de 29 de março de 1890 - Diário do Governo n.º 76 de 7 de abril de 1890, p. 721-722.
4 Lei de 26 de julho de 1893 - Diário do Governo n.º 236 de 18 de outubro, p. 2667. Este diploma vigorou até publicação do diploma de 1933. Não fazia depender as reuniões em lugares públicos ou em recintos fechados de licença prévia. Estipulava apenas o seu aviso prévio, excluindo desta disposição, as reuniões de caráter científico, literário ou artístico realizadas no âmbito de associações.
5 Decreto-Lei n.º 22468 de 11 de abril de 1933.
6 Anexo à Lei n.º 3/74 de maio, define a estrutura constitucional transitória que regerá a organização política do país, até à entrada em vigor da nova Constituição Política da República Portuguesa.
7 De acordo com Ramos (p. 360), esse ponto de vista foi defendido pelo deputado da Assembleia Constituinte, Freitas do Amaral.
8 Art.º 45.º, Constituição da República Portuguesa. Decreto de 10 de abril de 1976.
9 A ocupação do jornal República (afeto ao PS) pela maioria dos trabalhadores de partidos de esquerda, iniciada em maio, foi de acordo com o PS instrumentalizada pelo PCP.
10 O documento aprovado na Assembleia do MFA, em 8 de julho, preconizava o avanço da Revolução através da implementação de uma estrutura de poder popular que não contemplava a linha de democracia representativa defendida pelo PS.
11 Consultado no Arquivo digital da Fundação Mário Soares.
12 "Portugal Socialista. Órgão Central do Partido Socialista", n.º 52, sábado, 19 de julho de 1975, Lisboa, Fundação Mário Soares / Arquivo Histórico do Partido Socialista, Disponível HTTP: http://casacomum.org/cc/visualizador?pasta=12265.008 (2024-8-13).
13 Ver Reis [et al.], p. 322.
Bibliografia
BAPTISTA, Eduardo Correia - Direitos de reunião e de manifestação no direito português. Coimbra: Almedina, 2006.
CEREZALES, Diego Palacios - O poder caiu na rua: crise de estado e acções colectivas na revolução portuguesa. Lisboa: ICS, 2003.
RAMOS, Maria Lídia de Oliveira - O direito de manifestação. Revista de história. 9 (1989), p. 351-391.
REIS, A; REZOLA, M. I.; SANTOS, P. B. (coord.) - Dicionário de História de Portugal: o 25 de Abril. Vol. 6. Porto: Figueirinhas, 2016.












