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Detalhe

Do Punk ao Near Silence III

10.ª edição

Topografias ImagináriasDo Punk ao Near Silence III é o terceiro ciclo de visionamentos comentados, onde se mapeia o encontro entre o cinema, a música e a cidade de Lisboa.

Em 2023, Do Punk ao Near Silence passou pelo Punk, o Pós-Punk e a Pop, e os bairros de Alvalade, Rego, Campo de Ourique e Bairro Alto. Em 2024, o foco deslocou-se para o Jazz e o Hot Club, da Praça da Alegria, entrou pelo Rock Progressivo e no Cinearte de Santos, e abraçou a Pop Electrónica em locais icónicos do Cais do Sodré. A jornada culmina em 2025, rumando para a Praça das Flores e os bairros da Pampulha, da Ajuda e de Belém, com a celebração da Música Improvisada e Experimental mas também da Música Erudita Contemporânea e do Near Silence.

As duas primeiras sessões deste III ciclo, abrem com uma longa-metragem e prosseguem com uma conversa sobre os filmes e as tipologias musicais em foco. A terceira e última sessão, inicia com uma conversa e encerra em celebração musical, com um Concerto Near Silence.

O programa que agora se completa, reúne um conjunto de documentários e registos que configuram momentos históricos e memórias da Música em Lisboa, numa aproximação às músicas e músicos que a fizeram e fazem, e às estórias de quem a viveu e vive por dentro, já que, embora em permanente transformação, a criação persiste.

Sendo esta a última edição do ciclo, está já em preparação um livro sobre o mesmo tema, construído a partir das conversas gravadas nas três edições de Topografias Imaginárias — Do Punk ao Near Silence.

Que este mapa sonoro continue a expandir-se — autêntico, errante, mutável, radicalmente aberto ao que ainda não se escutou e ao que queremos voltar a ouvir — em escutas prolongadas que vibram nos corpos e nos lugares, como ecos íntimos por entre ruas, paredes e silêncios de Lisboa.


Teatro S. Luiz

Sala Mário Viegas
Rua António Maria Cardoso 38, 1200-027 Lisboa
(A classificar pela CCE)

30 outubro a 1 novembro, 19:00 às 22:30

Entrada livre sujeita à lotação da sala. Bilhetes disponíveis no próprio dia na bilheteira do Teatro a partir de uma hora antes do evento (até 2 por pessoa).

Teatro S. Luiz

Rua António Maria Cardoso 38, 1200-027 Lisboa

30 outubro
19:00 - A  Escuta
Inês Oliveira, 2022, 55´
Seguido de conversa comentada por Rui Eduardo Paes e moderada por Ilda Teresa Castro, com Inês Oliveira, Carlos "Zingaro" e Miguel Azguime

31 outubro
19:00 - Sonosfera Telectu
de Carlos Mendes, IIda Teresa Castro, Vasco Bação e Vítor Rua, 2022, 110´
Seguido de conversa comentada por Pedro Félix e moderada por Ilda Teresa Castro, com Nuno Rebelo, Vítor Rua, Pedro Costa

1 novembro
19:00 - Conversa comentada por Ricardo Mariano e moderada por Ilda Teresa Castro, com Ernesto Rodrigues, Maria do Mar e Maria Radich.

20:30 - Concerto Near Silence
1ª Parte
Carlos "Zingaro" (violino), Helena Espvall (violoncelo) e Vítor Rua (guitarra)
2ª Parte
Ernesto Rodrigues (viola) Maria do Mar (violino) e Maria Radich (voz)

Direção executiva: Fernando Carrilho
Autoria, coordenação de projeto e programação: Ilda Teresa Castro
Design: Joana Pinheiro
Montagem Fotográfica: Fátima Rocha
Som de Régie: Pedro Lourenço, Pedro Vieira, Álvaro Silva
Comunicação: Pedro Cordeiro e Susana Santareno
Secretariado: Sofia Macedo, Manuela Martins
Apoio de serviços da CML: Divisão de Gestão de Frota; Secretaria Geral - Imprensa Municipal

Organização: Câmara Municipal de Lisboa
Vereação da Cultura: Carlos Moedas
Direção Municipal de Cultura: Laurentina Pereira
Departamento de Património Cultural: Jorge Ramos de Carvalho
Divisão de Arquivo Municipal: Helena Neves
Coapresentação: Arquivo Municipal de Lisboa | Videoteca e São Luiz - Teatro Municipal

Ilda Teresa Castro — Em finais dos anos 1990, tu e Richard Teitelbaum introduziram em Portugal o conceito de "threshold", agora amplamente invocado pelos praticantes do Near Silence. Podes descrever em que consiste essa técnica?

Carlos “Zingaro” — Seria mais um “conceito”, no lugar de uma “técnica”, específica, conceito esse que vinha de pensamentos que se estabelecem algures em John Cage ou em Morton Feldman (porque não ainda antes em Satie…) e que continuam, de maneira talvez mais definida e personalizada, com Pauline Oliveros, igualmente próxima de Richard Teitelbaum, vizinhos de Woodstock e pontualmente do Bard College, onde o Richard foi docente durante décadas e onde, Richard e eu, apresentamos concertos em iniciativa proposta por Pauline. Assinale-se ainda que Pauline estava presente na estreia mundial da peça 4’33” de John Cage, em 1952 no Maverick Hall em Woodstock, iniciativas estas que em muito determinariam a essência da sua prática e pensamento futuros.

Concretamente conheci Richard Teitelbaum em 1978 em New York, através do músico/compositor Steve Lacy, sendo a partir da minha presença na Creative Musical Foundation em Woodstock, no ano seguinte, que se determinou uma muito mais próxima e continuada colaboração musical e minha pessoal, e ainda maior perceção de conceitos e práticas. Das músicas “interspecies”, da “brain wave music” ou da “biofeedback”, assim como os conceitos de “silêncio” de John Cage. Em relação ao tema, as “margens” do som percetível, em noções próximas de um possível “minimalismo”, de Terry Riley a La Monte Young, passamos por uma determinada simplificação intencional do que se considera, de maneira algo académica, elementos base da música.

Curiosamente também ocorreu a alguns autores, uma possível distanciação entre uma designada “estética do grito”, tão comum às práticas “free jazz” frequentemente nos anos 1960/70. Na prática, resultaria por oposição, na redução de materiais, em uma contenção de elementos, essencialmente em conceitos composicionais ou intelectuais. Quase como a diferença entre se tocarem muitas notas ou pelo contrário, se tocarem muito poucas…  Será um estabelecer reduções e abertura de espaços, de parâmetros limitados a controles de linguagens ou expressões, numa limitação de matérias ao quase zero.  Longe de significar empobrecimento artístico, o “near silencie” tenta criar alguma outra profundidade por meio justamente da contenção, repetição e escassez de material sonoro, convidando o ouvinte a uma escuta  “profunda”, mais atenta, introspetiva e sensorial.

Resumindo pois… economia de material sonoro, uso de poucos sons, longos silêncios e ausência de desenvolvimento melódico ou harmónico. A atenção ao som em si, em que o foco estará na qualidade tímbrica, nos ruídos, nas frequências limítrofes à perceção, e na textura sonora mais do que em estruturas tradicionais. O silêncio deixa de ser uma pausa para se tornar um componente estrutural da obra. Ele molda a escuta, cria expectativa e valoriza cada som isolado. A expressividade é subjetiva e internalizada. A abordagem de um “reducionismo” musical,  que determinará alguma outra maneira de entender a perceção do som, da música, do espaço, num relacionar de elementos próprios e/ou exteriores. A tensão da primeira nota/som, nas margens do inaudível, conseguirmos ainda a capacidade de entendermos ou percebermos o espaço que nos rodeia. Quando materiais mínimos ficam dispersos ou se confundem na nossa escuta. Quando os espaços entre som e silêncio se tornam psicologicamente de grande significado, quando o designado “near silente” nos força a estados extremados de audição ou atenção.

Este patamar de “quase silêncio” acaba por diluir categorias: é ainda música ou ruído ambiente? A peça terá já terminado ou estará  a decorrer? Estarei ainda a ouvir a composição ou antes a memória do espaço do meu próprio eu?!

Assim, a “threshold” consegue-se onde o som se encontra com os limites da audição. Quando se nos força a perceção de que a ausência de som será tão expressiva quanto a sua presença… E ainda, que o silêncio poderá tornar-se uma expressão artística tão “forte” ou presente quanto o próprio som.

Finalmente, na música denominada experimental, a definição de “threshold” pode definir espaços seminais na música / som que se situam entre tonalidade e ruído, entre ritmo e caos, consonância e dissonância.  São para nós os extremos / margens da percepção.

Ilda Teresa Castro — Em que circunstâncias, seja nos teus solos ou nas várias constelações de parcerias sonoras que frequentas, emerge o Near Silence? Através dessa arquitetura sonora de quase-silêncio, tens presente a atenção ao espaço acústico, ao tecido espectral, ao “colapso do gesto” temporal?

Carlos “Zingaro” — Fundamentalmente é um facto que considero muito mais o espaço “composicional” para fazer uso desses elementos pois, considerando a chamada “improvisação total” um espaço coletivo, de partilha, de escuta fundamental, não me seria concetualmente prático ou executável, determinar a outros este tipo de materiais, que estabelecessem alguma estruturação à partida, mesmo que mínima ou como base de conceito para composição. Assim, enquanto apenas solista, as decisões são fundamentalmente pessoais e autónomas. Também como as escolhas dos espaços me são determinantes pois, na medida do possível, opto sempre por espaços com acústica “viva”, atuante e interativa, também ela afinal parte desta co-composição onde me é permitido o quase sopro.

Claro que este tipo de espaço poderá ser “fabricado” ou falseado com tecnologias de ponta, mas reconheço que me é por demais importante (vital?!…) o som da pedra, vidro, metal, madeira ou quaisquer outros espaços refletores… em que estes materiais me podem determinar outras possíveis “arquiteturas”. Nenhum destes espaços tem “silêncios”, pelo que o “near silence” será mais um conceito, eventualmente poético, em que se cruzam as margens do som e do não som.

Ilda Teresa Castro — Por fim, e já numa sintaxe que vagueie como uma pausa entre notas, o que é para ti o Near Silence? Uma presença inaudível, uma textura desligada, uma arquitetura de ar entre os sons? 

Carlos “Zingaro” — Recordo as minhas sessões de gravação para o solo do Mosteiro dos Jerónimos em 1991, em que um ligeiríssimo deslocar de pés nas minúsculas partículas de areia no chão do imenso mosteiro, fazia imediatamente parte do registado material acústico pois, na realidade, nada é inaudível. Mesmo no interior das câmaras anecoicas, alegadamente haverá o metabolismo do corpo presente, no seu pulsar e respirar… portanto resta-nos a redução da ação sonora, tentando o subtil ou o espaço entre objetos sonoros, entre frases da construção musical.

Talvez abusivamente referindo as artes visuais e as suas tão diferentes abstrações, penso em Mark Rothko e o “silêncio” de alguma da sua pintura… ou antes, o imenso e avassalador “ruído” de uma só cor. Ou, em quase radical oposição, a pintura última de Philip Guston, quando extremava o “ouvinte” ao choque estilístico…

Pessoalmente, considerando a música (ou o som) um jogo com o peso de demasiadas possíveis regras, ou antes como a supressão de algumas fundamentais como no aleatório, pessoalmente sempre me atraiu o espaço possível do “nada”, do apagamento inesperado, ou justamente, de “uma arquitetura (inabitável?…) de ar entre os sons”.

Ilda Teresa Castro — Derek Bailey afirmou, “Improvisation enjoys the curious distinction of being both the most widely practised of all musical activities and the least acknowledged and understood." O que é, para ti, a improvisação?

Maria do Mar — A improvisação é uma forma de composição musical em que a estruturação da peça surge no próprio momento da sua execução. Podemos considerar a improvisação de dois modos, ou simplesmente como uma técnica ou como uma estética, ou ainda ambas as coisas. No meu caso, entendo-a sobretudo como uma técnica de experimentação/exploração sonora.

Ilda Teresa Castro — Miles Davis, por seu turno, não hesitou em declarar “There is no such thing as error in jazz.” Sendo a improvisação total algo tão abrangente e livre, podemos dizer que não existe “erro” nesta tipologia musical?

Maria do Mar — Acho, pelo contrário, que o “erro” é um dos fundamentos da prática da improvisação musical. No sentido não necessariamente do “mal tocado” ou do “proibido”, mas de uma abertura ao acaso, ao momento e ao acidente, de maneira a criar algo de novo. Na minha experiência pessoal, foi precisamente a minha frustração com a educação clássica e a sua aversão ao “erro” que me conduziram à música improvisada e experimental, área em que me sinto mais livre, mais criativa e finalmente curada de traumas.

Ilda Teresa Castro — Segundo Adorno, “A tradição das novas coisas precisa sempre de novos começos”. O que pensas da improvisação em Portugal?

Maria do Mar — Acho que a cena da música improvisada portuguesa é uma das mais palpitantes e dinâmicas de todo o mundo, caraterizando-se por um alto nível de qualidade e uma identidade muito própria. Ainda assim, considero que uma parte dela poderá estar ainda muito presa aos padrões idiomáticos do jazz. É outra a linha em que me situo, e não apenas em termos musicais. A minha intervenção está a ser cada vez mais transdisciplinar, incluindo aspetos performativos e visuais, além de uma perspetiva de ativismo que passa pelas minhas preocupações ecofeministas, pós-humanistas e queer. Ou seja, há na minha música aspetos que não são específicos à matéria musical.

Ilda Teresa Castro — Em palavras de Clarice Lispector, “Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome.” Durante décadas, as mulheres estiveram quase ausentes das margens improvisadas da música portuguesa. Hoje, felizmente, esse cenário transformou-se e há cada vez mais mulheres a ocupar o palco da improvisação, não como exceções, mas como presenças centrais e necessárias.  Qual a tua opinião sobre as mulheres na improvisação em Portugal?

Maria do Mar — Continuamos a ser menos programadas do que os homens e muitas vezes quando somos é porque alguns músicos homens nos convidam para tocar com eles ou porque alguma organização começou a pensar em termos de quotas, o que não é propriamente a melhor solução para este problema. Mais difícil é serem aceites, pelos programadores e pelas instituições culturais, projetos protagonizados por mulheres. Seja como for, as coisas melhoraram na última década. Já foi bem pior. Creio, de qualquer modo, que o pouco lugar que é dado às mulheres na improvisação é parte de uma realidade mais complexa e abrangente. A fraca presença de mulheres na música improvisada está ligada às invisibilidades LGBTQ que também se verificam. Os motivos são exatamente os mesmos: discriminação. Nesse aspeto, contrasta com o que observamos em Portugal noutras áreas musicais, como a pop, o rock e o hip-hop, que são mais inclusivas. Na música improvisada encontramos o mesmo tipo de cenário que define o jazz português – conservadorismo social e mentalidade patriarcal.

Ilda Teresa Castro — Finalizo com outra grande máxima, desta vez de Claude Debussy, “Music is the space between the notes”. Tens algum método, técnica ou linguagem improvisacional que te seja idiossincrática?

Maria do Mar — Acho que quem me ouve poderá responder melhor a esta questão. Mas posso dizer o seguinte: tenho como princípio não excluir qualquer tipo de recurso enquanto estou a improvisar. Nada tenho como proibitivo, sejam melodias, texturas abstratas, ruídos, beats, sons corporais, movimentos, voz, ambientes sonoros. Escolhi tocar esta música precisamente pela liberdade que me proporciona – é a música em que mais correspondências encontro com a vida e o seu caráter orgânico e natural. Incluo tudo o que oiço na música que faço, seja qual for a proveniência estilística dessas incorporações. No que respeita especificamente ao violino, não reprimo a minha formação clássica, mas também não a deixo travar a minha procura de outras sonoridades e soluções musicais, por meio de técnicas extensivas, processamentos e cruzamentos com outras culturas musicais.

Ilda Teresa Castro — Derek Bailey afirmou, “Improvisation enjoys the curious distinction of being both the most widely practised of all musical activities and the least acknowledged and understood.” O que é, para ti, a improvisação?

Maria Radich — Liberdade. Escuta. Relações. Sensibilidade. Espontâneo. É um momento de troca com outros músicos. Uma conversa sonora onde a escuta é imprescindível. 

"Estar inteiro". 

Quando estamos a improvisar de forma livre acabamos por conhecer a essência não só do músico mas da pessoa que toca connosco. Por vezes é visceral porque se quebram barreiras e existe uma entrega total. "Despimo-nos" de concepções estabelecidas. 

Desconstruimos a nossa sabedoria tornando-a em algo maior e mágico. 

Ilda Teresa Castro — Miles Davis, por seu turno, não hesitou em declarar “There is no such thing as error in jazz.” Sendo a improvisação total algo tão abrangente e livre, podemos dizer que não existe “erro” nesta tipologia musical?

Maria Radich — O "erro" criativo dá uma grande riqueza à música quando estamos a improvisar. São as pequenas "surpresas" que acontecem na improvisação porque nos surpreendem e sugerem outro caminho, outra linguagem que ainda não tínhamos descoberto ou explorado. 

Penso que ainda assim na improvisação livre não vale tudo. 

Acho que o único erro que poderá acontecer na improvisação livre, é quando um músico que improvisa com outros músicos não se disponibiliza a ouvir ou, fechando-se nas suas ideias, acabar por não haver troca, não haver comunicação.. 

Ilda Teresa Castro — Segundo Adorno, “A tradição das novas coisas precisa sempre de novos começos”. O que pensas da improvisação em Portugal?

Maria Radich — Penso que a improvisação em Portugal, de há uns anos para cá, está muito forte e com excelentes músicos. Sinto que cada vez há mais músicos a fazer improvisação livre. Há mais concertos a acontecer durante a semana e fins de semana, alguns em simultâneo, em espaços diferentes, o que acho muito positivo. Há cada vez mais público. Também temos exemplos como o MIA - Encontro de Música Improvisada de Atouguia da Baleia, um evento incrível onde se juntam músicos de Portugal e todo o Mundo. Encontros como este fazem crescer ainda mais o impacto da improvisação em Portugal. 

Ilda Teresa Castro — Em palavras de Clarice Lispector, “Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome.” Durante décadas, as mulheres estiveram quase ausentes das margens improvisadas da música portuguesa. Hoje, felizmente, esse cenário transformou-se e há cada vez mais mulheres a ocupar o palco da improvisação, não como exceções, mas como presenças centrais e necessárias.  Qual a tua opinião sobre as mulheres na improvisação em Portugal?

Maria Radich — Não vejo tantas mulheres a fazer improvisação em Portugal como no caso dos homens mas acho que esse número está a crescer e vamos ocupando um lugar com destaque, a fazer excelente música e com mais visibilidade. Assim como há projetos só com homens ou mistos, também há novos projectos musicais só com mulheres e isso é igualmente de se valorizar. Gostaríamos sim, que houvesse mais convites para concertos que ainda não são muitos. É um meio muito importante para divulgar a nossa música. 

Ilda Teresa Castro — Finalizo com outra grande máxima, desta vez de Claude Debussy, “Music is the space between the notes”. Tens algum método, técnica ou linguagem improvisacional que te seja idiossincrática?

Maria Radich — O meu trabalho com a voz vive muito dos sons, linguagens inventadas para criar ambientes ou ritmos. Tanto posso estar a cantar melodias como recorrer a onomatopeias, estalidos, sopros, respirações etc., sugestões de sons que se possam encaixar nos outros instrumentos de forma a acrescentar mais uma camada.  Simplesmente deixo acontecer. Normalmente não utilizo textos, só muito pontualmente frases curtas ou palavras soltas. As palavras têm um peso que ainda me deixam desconfortável se não o fizer bem feito. 

Ilda Teresa Castro — Derek Bailey afirmou, “Improvisation enjoys the curious distinction of being both the most widely practised of all musical activities and the least acknowledged and understood.” O que é, para ti, a improvisação?

Nuno Rebelo — Esta pergunta obriga-me a um grande esforço de síntese para poder descrever, em poucas palavras, algo sobre o qual ao longo dos anos tenho vindo a refletir e a questionar, nos seus variados aspetos e nuances, na multiplicidade de experiências que me tem proporcionado, nas diferentes formas que pode assumir. Não é fácil portanto dar uma resposta concisa, mas atrevo-me a dizer que é quando uma forma de arte trata do momento, no presente, como universo do ato criativo. Ou seja, simplificando e sintetizando ainda mais, a improvisação é o momento presente do ato criativo.

Ilda Teresa Castro — Miles Davis, por seu turno, não hesitou em declarar “There is no such thing as error in jazz.” Sendo a improvisação total algo tão abrangente e livre, podemos dizer que não existe “erro” nesta tipologia musical?

Nuno Rebelo — Pelo contrário, eu sou da opinião que a possibilidade de erro está permanentemente à espreita na improvisação. O erro pode ter duas consequências possíveis: a consequência má, em que o erro impede que uma situação com potencial se desenvolva e floresça; e a consequência boa, em que o erro inesperadamente abre um caminho novo que não se vislumbraria se o erro não tivesse ocorrido.
 
Ilda Teresa Castro — Segundo Adorno, “A tradição das novas coisas precisa sempre de novos começos”. O que pensas da improvisação em Portugal?

Nuno Rebelo — Penso que evoluiu muito desde os tempos pioneiros e rarefeitos dos anos 70, desde os tempos de tímida expansão nos anos 80, que foi quando eu comecei a tomar contato com este universo, desde os tempos de consolidação, multiplicação e desmultiplicação a partir dos anos 90. Éramos muito poucos; agora somos muitos e a trilhar caminhos estéticos muito variados. Infelizmente, invariavelmente votados quase sempre à marginalidade.

Ilda Teresa Castro — Em palavras de Clarice Lispector, “Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome.” Durante décadas, as mulheres estiveram quase ausentes das margens improvisadas da música portuguesa. Hoje, felizmente, esse cenário transformou-se e há cada vez mais mulheres a ocupar o palco da improvisação, não como exceções, mas como presenças centrais e necessárias.  Qual a tua opinião sobre as mulheres na improvisação em Portugal?

Nuno Rebelo — Obviamente parece-me muitíssimo bem, nem compreendo que se possa dar outra resposta a esta pergunta.
 
Ilda Teresa Castro — Finalizo com outra grande máxima, desta vez de Claude Debussy, “Music is the space between the notes”. Tens algum método, técnica ou linguagem improvisacional que te seja idiossincrática?

Nuno Rebelo — Sim, a diferentes níveis. Por um lado, um discurso pessoal na digitação das cordas da guitarra, com articulações e dissonâncias muito minhas. Em segundo lugar, a utilização de certos objetos para preparar a guitarra, aproximando a guitarra de um instrumento de percussão. Finalmente, o processamento da guitarra, utilizado não tanto para transformar o som da guitarra mas sim para expandir a própria linguagem daquilo que estou a tocar. Isto no que toca à minha relação com o instrumento. 

Queria ainda referir que as respostas que aqui dei se referem sobretudo à minha atividade como improvisador guitarrista. Mas, com alguma frequência, tenho tido a possibilidade de improvisar como músico/performer, o que levanta toda uma outra série de questões e um modo de estar em improvisação bastante diferente do do guitarrista. 

Ilda Teresa Castro — Derek Bailey afirmou, “Improvisation enjoys the curious distinction of being both the most widely practised of all musical activities and the least acknowledged and understood.” O que é, para ti, a improvisação?

Vítor Rua — Responder a esta pergunta é como tentar segurar água nas mãos: por mais firme que seja o gesto, há sempre algo que escapa. A improvisação não é uma definição, mas um movimento, uma sombra em trânsito. É uma pergunta que não pode ter uma só resposta, e talvez nenhuma definitiva. Ao longo da história da música, enigmas semelhantes — “o que é o jazz?”, “o que é o rock?” — ecoaram mais como abismos do que como enunciados. Derek Bailey, no seu livro seminal Improvisation: Its Nature and Practice in Music (1974), foi talvez o primeiro a traçar a grande dicotomia entre improvisação “idiomática” e “não-idiomática”. A primeira inscreve-se num estilo reconhecível: jazz, flamenco, música indiana, rock. A segunda, por contraste, é aquela que não pertence a idioma algum: a improvisação total. É nessa que me movo há décadas, procurando uma música que não se reconhece onde começa nem onde acaba. Mas eis o paradoxo: ao nomearmos “não-idiomática”, criamos um idioma, ainda que negativo. Aquilo que é praticado e reconhecido como ausência de idioma passa, desde logo, a configurar uma linguagem própria. Tal como Wittgenstein advertia sobre os limites da linguagem, também aqui a fronteira da ausência se torna presença. Reconhecemos uma improvisação total precisamente porque ela carrega em si sinais, marcas, gestos — e assim se torna identificável, logo, idiomática. Será então possível falar de uma improvisação sem idioma? Talvez não. No seu nascimento, a improvisação total já surgia como resposta à música contemporânea escrita e ao free jazz. Havia uma herança de rutura e de assimilação, uma genealogia escondida que, mesmo ao tentar cortar raízes, desenhava novas linhas de pertença. A improvisação não-idiomática não nasceu do vazio, mas de uma pulsão de libertação em relação a gramáticas estabelecidas. É esse gesto — radical e inaugural — que continua a defini-la. Improvisar, afinal, é habitar esse território ambíguo: o lugar onde a ausência de idioma se torna um idioma em si, e onde cada som carrega em si o paradoxo de não pertencer a nada e de pertencer a tudo.

Ilda Teresa Castro — Miles Davis, por seu turno, não hesitou em declarar “There is no such thing as error in jazz.” Sendo a improvisação total algo tão abrangente e livre, podemos dizer que não existe “erro” nesta tipologia musical?

Vítor Rua — O “erro” é uma palavra traiçoeira. Parece apontar para o desvio, para a falha, para o que não deveria ter acontecido. Mas a música, e sobretudo a improvisação, reconfigura essa noção. Sim, Miles Davis afirmava: There is no such thing as error in jazz. Não porque tudo seja permitido em absoluto, mas porque o erro é matéria-prima de criação. As “blue notes” do jazz são precisamente notas “fora” — erros que deixaram de o ser, porque se tornaram identidade. Thelonious Monk, com a sua ironia genial, dizia: I made the wrong mistakes. Há erros que iluminam e erros que apenas toldam. Na improvisação total, o erro não desaparece; muda de pele. Não é já tocar notas fora da escala, nem tropeçar em falhas técnicas. O erro, aqui, é de ordem ética: acontece quando um músico tenta impor aos outros uma tonalidade, um pulso, um centro de gravidade.

Improvisar em coletivo é como respirar em conjunto. A liberdade de um termina onde começa a liberdade do outro. O erro, nesta geografia, é colonizar o espaço do outro, retirar-lhe a possibilidade de responder, impor um caminho único quando a música deveria permanecer aberta a todos os possíveis. Assim, o erro existe, mas desloca-se. Deixa de ser uma falha formal para se tornar uma quebra da escuta, um bloqueio da partilha. O verdadeiro erro, na improvisação total, é esquecer que a música é, acima de tudo, relação.

Ilda Teresa Castro — “A tradição das novas coisas precisa sempre de novos começos”, segundo Adorno. O que pensas da improvisação em Portugal?

Vítor Rua — A improvisação em Portugal nunca foi um rio contínuo, mas antes um arquipélago disperso. Nos anos 80 e 90, era um território ocupado quase exclusivamente por nomes consagrados: Jorge Lima Barreto, Carlos Zíngaro, Miguel e Paula Azguime (Miso Ensemble), Nuno Rebelo, Paulo Curado, entre outros. Havia ainda eu próprio, no caminho com os Telectu, à procura de novas gramáticas. Era um território restrito, quase subterrâneo, onde poucos ousavam entrar. A partir dos anos 2000, deu-se o que poderíamos chamar de um “big bang” improvisacional. Novas gerações — Rafael Toral, David Maranha, Manuel Mota — abriram o espaço, multiplicaram horizontes. Lisboa e Porto deixaram de ser centros exclusivos: a improvisação expandiu-se pelo país, contaminando margens, periferias, pequenas cidades. Hoje, improvisadores portugueses cruzam fronteiras e colaboram com músicos de referência internacional. Mas a improvisação continua a necessitar de crítica, de pedagogia da escuta. Persistem equívocos: a ideia de que “tudo vale”, de que não há maus improvisadores nem maus concertos. Essa crença ingénua nasce da falta de cultura auditiva, do défice de educação estética. Improvisar não é fazer qualquer coisa: é uma disciplina invisível, rigorosa, tão exigente como qualquer música escrita. Portugal vive um momento fértil, sim. Mas a fertilidade exige cuidado: crítica, reflexão, cultivo da escuta. Só assim esta arte pode deixar de ser margem e inscrever-se, com o peso que merece, na paisagem musical.

Ilda Teresa Castro — Em palavras de Clarice Lispector, “Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome.” Durante décadas, as mulheres estiveram quase ausentes das margens improvisadas da música portuguesa. Hoje, felizmente, esse cenário transformou-se e há cada vez mais mulheres a ocupar o palco da improvisação, não como exceções, mas como presenças centrais e necessárias. Qual a tua opinião sobre as mulheres na improvisação em Portugal?

Vítor Rua — Com efeito, no rock, no jazz, na música contemporânea, as mulheres eram exceção rara e esse é um cenário onde ocorreu grande transformação. Um nome paradigmático é o da trompetista Susana Santos Silva, figura internacional que atua nos maiores festivais e grava com músicos de referência mundial. Mas não está só: há uma constelação crescente de criadoras a inscrever-se nesta paisagem. A improvisação, tal como qualquer arte, só se cumpre na pluralidade. A liberdade que buscamos na música perde o sentido se não for acompanhada da liberdade nos corpos que a produzem. O surgimento e afirmação das mulheres improvisadoras em Portugal é, assim, mais do que uma conquista de representatividade, é uma revolução silenciosa, um alargamento da própria noção de liberdade que sustenta a improvisação.

Ilda Teresa Castro — Finalizo com outra grande máxima, desta vez de Claude Debussy, “Music is the space between the notes”. Tens algum método, técnica ou linguagem improvisacional que te seja idiossincrática?

Vítor Rua — Improvisar, para mim, é instinto. É ser mais rápido que a sombra, como o Lucky Luke. Mas a intuição, no meu caso, encontrou também uma forma, uma estrutura invisível a que chamei “A Ordem Zero de Markov”. Markov, físico e matemático, criou um modelo de probabilidade que descrevia sequências em função da sua dependência. A ordem zero era a mais radical: cada evento é independente, não guarda relação causal com o anterior nem com o seguinte. Transportado para a música, isso significa: cada som pode existir por si, sem depender de nada antes ou depois. Essa lógica libertou-me. Não há notas proibidas, nem sequências obrigatórias. Cada som é autónomo, livre, insubmisso. Desde 1998, essa conceção alterou por completo a minha escrita e a minha prática. Passei a compor não por progressão, mas por estados; a improvisar não por narrativas, mas por intensidades. A Ordem Zero de Markov devolveu-me uma música de presente absoluto, onde cada som é já suficiente, e onde a escolha deixou de ser peso para se tornar pura possibilidade.

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