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Do Punk ao Near Silence I | 8º ciclo

Do Punk ao Near Silence I

8.º ciclo de visionamentos comentados

Do Punk ao Near Silence I é um ciclo de visionamentos comentados, programado e produzido por Ilda Teresa Castro, onde se mapeia o encontro entre o cinema, a música e a cidade de Lisboa, que terá as três primeiras sessões a decorrer no Teatro Municipal de São Luiz e uma quarta sessão na Videoteca Municipal de Lisboa.

Cada sessão deste ciclo começa com uma curta-metragem, segue com uma conversa com músicas e músicos, realizadores e autores, radialistas e especialistas da tipologia musical em foco, e conclui com uma longa-metragem, excepto a quarta sessão que não incluirá a longa-metragem final.

No pós-25 de Abril e início dos anos 80, a emergência em Lisboa do Punk, pós-Punk e Pop e Rock português está na origem de uma mudança musical que foi simultaneamente estética, sociocultural e política – e contaminou o resto do país. Patente nos comportamentos, atitudes e vivências, esta movida transversal envolveu espaços de alguns bairros da cidade, ligados pela música como impulso comum.

O programa reúne, assim, um conjunto de documentários que reconstituem esses momentos históricos e essa memória.


Teatro Municipal São Luiz
Sala Mário Viegas

Sábados, 19:30, 20:00 e 21:30
(A classificar pela CCE)

Entrada livre sujeita à lotação da sala.
Bilhetes disponíveis na bilheteira do Teatro no próprio dia, a partir das 15:00
(máximo 2 por pessoa)

Arquivo Municipal de Lisboa | Videoteca
Sábados, 17:00
(A classificar pela CCE)

Entrada livre sujeita à lotação da sala.

7 OUTUBRO


19:30

Arquivos Kino-Pop1 Vol7 – Censurados
Edgar Pêra, 2019, 30´
Produção: Rodrigo Areias/ Bando à Parte

20:00

CONVERSA comentada por Paula Guerra e Ilda Teresa Castro com
David Francisco
Iolanda Batista
Nazaré Pinela
Nuno Calado

Intervalo 30 min.

21:30

Fantasma Lusitano
David Francisco, 2016, 57´
Nuno Calado (autor)
Produção: Moopie

 

14 OUTUBRO


19:30
Arquivos Kino-Pop1 Vol1 – Pedro Ayres  Magalhães
Edgar Pêra, 2019, 30´
Produção: Rodrigo Areias / Bando à Parte

20:00

CONVERSA comentada por Ana Cristina Ferrãoe Ilda Teresa Castro com
Luís Carlos Amaro
Ricardo Espírito Santo
Rui Pregal da Cunha
Ondina Pires

Intervalo 30 min.

21:30

Rock Rendez Vous – A Revolução do Rock
Ricardo Espírito Santo, 2014, 44’ Luís Carlos Amaro (autor)
Produção: Terra Líquida Filmes

 

21 OUTUBRO


19h30

Arquivos Kino-Pop1 Vol4 – Manuel João Vieira & Irmãos Catita
Edgar Pêra, 2019, 30´
Produção Rodrigo Areias/ Bando à Parte

20:00

CONVERSA comentada por Vítor Rua e Ilda Teresa Castro com
João Peste
Luís San Payo
Miss Suzie
Xana

Intervalo 30 min.

21:30

Ainda Tenho um Sonho ou Dois – A História dos Pop Dell´Arte
Nuno Duarte, 2018, 54´
Nuno Galopim (autor)
Antena 3

 

9 DEZEMBRO


17:00

Arquivos Kino-Pop Vol 2 Xutos & Pontapés 1985-1986 (VERSÃO INÉDITA)
Edgar Pêra, 2023, 30’
Produção Rodrigo Areias/Bando à Parte

17:30

Conversa comentada por Ilda Teresa Castro com:
Alexandre Gonçalves
Anabela Mayor
Gimba
João Gata
Luiz Morgadinho
Maria João
e Paulo Morgado

ARQUIVOS KINO-POP VOL2.: XUTOS & PONTAPÉS
Neste episódio dos Arquivos Kino-Pop imagens inéditas das rodagens do filme “Um Dia Destes” com a banda Xutos & Pontapés em 1986 em Benfica e o concerto na Sociedade Rio de Janeiro no Bairro Alto em 13 de Setembro de 1985.

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1 Arquivos Kino-Pop, arquivos de Edgar Pêra com músicos oriundos da década de oitenta: Censurados (banda punk liderada por João Ribas), Pedro Ayres Magalhães (fundador das bandas Faíscas, Corpo Diplomático, Heróis do Mar, Madredeus e Resistência), Manuel João Vieira e os Irmãos Catita (artista plástico e fundador ainda das bandas Ena Pá 2000 e Corações de Atum) e Xutos & Pontapés.

 

Arkivos Kino-Pop


Arquivos Kino-Pop, os arquivos de Edgar Pêra com músicos oriundos da década de oitenta: Censurados (banda punk liderada por João Ribas), Pedro Ayres Magalhães (fundador das bandas Faíscas, Corpo Diplomático, Heróis do mar, Madredeus e Resistência), Manuel João Vieira e os Irmãos Catita (artista plástico e fundador ainda das bandas Ena Pá 2000 e Corações de Atum) e Xutos & Pontapés.

 

FANTASMA LUSITANO

David Francisco, 2016, 57´
Nuno Calado (autor)
Prod. Moopie

"Fantasma Lusitano" é um documentário sobre Jorge Bruto, nome incontornável do punk em Portugal. A história do frontman dos Capitão Fantasma, Emílio e a Tribo Do Rum, Bruto and the Cannibals e Club Sin.

 

ROCK RENDEZ VOUS – A REVOLUÇÃO DO ROCK

Ricardo Espírito Santo, 2014, 44’
Luis Carlos Amaro (autor)
Prod. Terra Líquida Filmes

O principal clube de rock português foi o lugar simbólico de todas as alterações culturais que transformaram e urbanizaram a sociedade portuguesa. O advento do rock português, as mudanças nos comportamentos, as novas modas e as alterações culturais podem ser contadas a partir das noites do Rock Rendez Vous. Tal como as trombetas de Jericó derrubaram as muralhas bíblicas, os acordes do rock rebentaram com barreiras sociais em Portugal e assinalaram o advento de uma sociedade jovem num país, que devido à ditadura, não tinha vivido as grandes convulsões culturais e sociais dos anos sessenta e setenta. O documentário sobre o Rock Rendez Vous recupera um conjunto de imagens, na posse de particulares e instituições, que nos fazem viajar durante a década em que a fábrica do rock português esteve aberta. Na sucessão destes dias de música, mostram-se as grandes mudanças culturais, sociais e políticas que o Rock Rendez-Vous ajudou a produzir. Zé Pedro dos Xutos, Rui Pregal da Cunha (Heróis do Mar), Rui Veloso, Rui Reininho, Xana dos Rádio Macau, Adolfo Luxúria Canibal, António Manuel Ribeiro (UHF), Miguel Cadete (diretor do Blitz), Edgar Pêra, João Peste, Ana Cristina Ferrão mulher de António Sérgio, Rui Vasco (fotógrafo), críticos musicais e muitos outros, protagonizam a história da mais celebrada sala de concertos do País.

 

AINDA TENHO UM SONHO OU DOIS – A HISTÓRIA DOS POP DELL´ARTE

Nuno Duarte, 2018, 54´
Nuno Galopim (autor)
Antena 3

Com mais de 30 anos de existência, os Pop Dell´Arte pautam-se por uma forte componente eclética e subversiva. Incorporaram na sua música referências como o Cinema, a Performance, a Poesia e toda uma gama de temas que, até à sua criação, nunca tinham sido abordados na música portuguesa. "Ainda Tenho Um Sonho ou Dois – A História dos Pop Dell’Arte" é um documentário com o carimbo Antena3Docs, da autoria de Nuno Duarte e Nuno Galopim, que tenta retratar a atribulada carreira de 30 anos dos Pop Dell’ Arte. Eles que são uma das bandas mais importantes da nova música portuguesa, liderada por João Peste, uma das figuras icónicas da pop portuguesa.

O documentário resume o que foram as mais de três décadas de existência desta banda lisboeta, desde os primeiros passos no mítico Rock Rendez Vous, à criação da editora independente Ama Romanta, até aos dias de hoje.

 

ARQUIVOS KINO-POP VOL2.: XUTOS & PONTAPÉS

Arquivos Kino-Pop Vol 2
Xutos & Pontapés 1985-1986 (versão inédita)
Edgar Pêra, 2023, 30’
Produção Rodrigo Areias/Bando à Parte


Neste episódio dos Arquivos Kino-Pop imagens inéditas das rodagens do filme “Um Dia Destes” com a banda Xutos & Pontapés em 1986 em Benfica e o concerto na Sociedade Rio de Janeiro no Bairro Alto em 13 de Setembro de 1985.

Programação: Ilda Teresa Castro

Coordenação: Fernando Carrilho

Produção: Ilda Teresa Castro

Design: Joana Pinheiro

Montagem Fotográfica: Fátima Rocha

Som de Régie: Pedro Lourenço, Álvaro Silva

Comunicação: Pedro Cordeiro e Susana Santareno

Secretariado: Sofia Macedo, Manuela Martins

Apoio de serviços da CML: Divisão de Gestão de Frota; Secretaria Geral - Imprensa Municipal


Organização: Câmara Municipal de Lisboa
Vereação da Cultura: Diogo Moura
Direção Municipal de Cultura: Laurentina Pereira
Departamento de Património Cultural: Jorge Ramos de Carvalho
Divisão de Arquivo Municipal: Helena Neves
Arquivo Municipal de Lisboa – Videoteca: Fernando Carrilho
Coapresentação: Videoteca do Arquivo Municipal de Lisboa e São Luiz Teatro Municipal

Contextualização

Textos das entrevistadoras convidadas


1.
Será o Rock Rendez-Vous o clube de música rock mais icónico de sempre? - pergunto-me quando oiço o lamento “que falta faz ter hoje um RRV”. Percorrendo o mesmo trilho estético tivemos anos depois o Johnny Guitar, no entanto quando a saudade aperta, dos tempos em que para “encontrar a família Rock´n´Roll” bastava dar “um pulo” ao Rego, sem dúvida que o RRV tem um espaço único reservado no nosso coração.

2.
Dezembro de 1980, ano da inauguração do RRV. Tinham passado escassos 6 anos depois da revolução, a transformação social e ideológica de Portugal assumia particular notoriedade na juventude ávida de se aproximar das suas congéneres europeias e americanas – faróis da estética inovadora. O espaço urbano lisboeta era contaminado por diversas representações juvenis de inovação, transgressão e subversão, já com forte expressão artística nacional. Foi este contexto que acolheu a oportunidade de criar o Rock Rendez-Vous, afilhado do Marquee londrino e do CBGB´s nova-iorquino, trouxe a estética rock para o quotidiano português, abrindo portas aos músicos, antes confinados às suas garagens-salas de ensaio e ao público ávido de viver a noite dançando, saltando e inebriando-se com altos decibéis.  

3.
Atitude, estilo, moda, começam lentamente a fazer parte da preocupação de uma juventude antes espartilhada nas calças de caqui e nas camisas aos quadrados. 

Adeus, monotonia. Adeus, bom comportamento. 

As correntes e os alfinetes saem à rua. O preto impõe-se como cor. Os olhos rasgam-se com eyeliners grossos. Os cabelos enchem-se de gel e de cores vibrantes. Vêm dos bairros limítrofes de comboio - chegam ao Cais do Sodré. Vêm do Norte e do Sul - chegam a Sta.  Apolónia. Bandos de jovens percorrem Lisboa, atravessam a Praça de Espanha e seguem até ao Rego. Mulheres ainda poucas, mas decididas a abanar o mundo e a pequenez patriarcal nacional. 

Faz-se barulho, fazem-se amigos, criam-se bandas novas. Lisboa vibra, é noite de ir até ao Rego, é noite de Rock Rendez-Vous. 


Apesar de terem sido anos fervilhantes, existem poucos registos em filme ou vídeo da cena musical de Lisboa no final dos anos 70, inícios dos 80. O punk e o pós-punk em Portugal contam-se em música, texto e fotografia, mas poucas vezes em imagens em movimento. Muitos dos poucos registos em filme ou video feitos na época, gravações de concertos e entrevistas em programas de televisão, acabaram deteriorados ou sacrificados na altura da poupança de recursos e reutilização de cassetes, alguns, eventualmente, continuarão perdidos em arquivos à espera de serem descobertos.

No presente, e no futuro, certamente, podemos criticar o excesso de vídeos e imagens que documentam concertos, entrevistas e todo o tipo de fenómenos musicais, locais e globais, mas também há que lamentar a nossa falta de memória visual do passado e fazer pela preservação e divulgação da pouca que existe.

Por isso, este ciclo de filmes e conversas é tão importante.

Ver os filmes e conhecer a história e motivações dos seus protagonistas é uma maneira de perceber melhor as dinâmicas socioculturais que permitiram a existência de uma cena musical que agitou vários bairros de Lisboa, assumindo diferentes expressões, mas tentando sempre romper com a norma.

De algum, ou vários modos, os ecos desses dias e dessa música, continuam a estender-se até aos dias de hoje.


Génese do punk em Portugal: entre o local e o global

Em Portugal, a Revolução de abril de 1974 funcionou como um catalisador de vontades, de reivindicações e de manifestações, e, assim foi favorável ao eclodir das primeiras manifestações punks em Portugal.

Na cidade de Lisboa, existiam pequenos grupos de jovens que mantinham contactos sistemáticos com as novidades (discos, roupas, bandas, revistas…) internacionais. Foi junto desses grupos que se localizou a vontade de ser punk, pondo em causa a noção, comummente aceite, de que o movimento punk surgiu espontaneamente da raiva da classe operária contra o sistema.

Em dezembro de 1977, António Sérgio assinalava a saída do primeiro single punk prensado em Portugal na Música & Som desse mesmo mês: “O perigo alastrou repentinamente e todo o mundo se pode muito bem ver incapaz de domar ou montar, seja de que maneira for, a ONDA. Saiu o 1.º single punk, prensado em Portugal”.

Em fevereiro de 1978 realizou-se a “primeira tarde” punk em Lisboa, no Archote Clube no Arco do Cego. Neste primeiro evento público de punk, houve passagem de discos, ainda não houve atuação de bandas. Mas o punk estava lançado em Portugal.

Não sendo propriamente um movimento, os primeiros grupos punk portugueses aparecem em finais da década de 1970 — Aqui d’El Rock, Faíscas, UHF, Xutos & Pontapés, Minas & Armadilhas, Raios e Coriscos — nestes escassos eventos, mostrando grande vivacidade e mobilização de protagonistas e seguidores; exemplos claros de focos de mudança e de penetração do punk e seu ideário em Portugal.

De forma muito circunscrita a Lisboa e restrita em termos temporais, os concertos vão continuando. É a partir daqui que o punk em Portugal conquista o seu espaço, abrindo caminho para os primeiros concertos de bandas punk estrangeiras em solo nacional (logo dos Ramones em 1980, por exemplo) e um percurso marcado por altos e baixos e metamorfoses constantes, mostrando uma reapropriação local do punk global. O que nos conduz a duas considerações: o punk rock é um claro exemplo de hibridismo cultural, pois ele não é igual em todo o lado; o punk rock é moldado e redefinido localmente, consoante os recursos e as necessidades sociais e políticas desses locais, num processo que mistura características do punk global e os elementos locais.

Ainda a propósito da configuração originária do punk português, podemos adiantar que entre formar bandas e dar concertos, tudo parece assumir uma forma marcada pelo do-it-yourself (DIY) em que toda a estrutura é partilhada e posta em funcionamento pelos próprios protagonistas. Aliás, esta é uma condição necessária para que o punk exista. O DIY promove a criação de música e as iniciativas locais e surge, num primeiro momento, como uma alternativa à música comercial e, num segundo momento, como uma forma de os atores sociais revelarem a sua total oposição às grandes produtoras de música que só se regem pelos lucros e que fizeram com que a diversidade musical, assim como as maneiras de produzir e de falar sobre música, fossem bem circunscritas.

Contributos para um Mapeamento


Ilda Teresa CastroComo era ser uma rapariga punk nesses tempos em termos sociais na cultura tradicional portuguesa lisboeta? Que tipo de conquistas, impacto, reações e dificuldades?

Iolanda Batista — Ser punk nessa época (anos 80) era, sobretudo, um ato de coragem! Defendíamos a afirmação de uma identidade que marcava a diferença em relação ao “cinzentismo” que ainda se via e sentia neste país, recém-libertado de um longo período de ditadura.

Independentemente do género, diferenciávamo-nos, principalmente, por andarmos em bando, pela estética e pela atitude, provocadora e rebelde, à semelhança do que já vinha a acontecer noutros países europeus onde o movimento punk havia florescido.

Eramos pacíficos, mas as pessoas assustavam-se connosco. A nível social, as reações sucediam-se, a mentalidade dos portugueses era ainda muito tradicional e conservadora. A nós dava-nos até um certo gozo provocar essa reação. As pessoas precisavam de um “abanão”, de abrirem horizontes. Enquanto jovens, queríamos apenas viver como os jovens de outros países europeus, numa sociedade mais evoluída, ao nível social, cultural e do pensamento. Regularmente, ouvíamos comentários depreciativos em relação à nossa imagem quando andávamos na rua ou nos transportes públicos. Para que se possa perceber, usar uma minissaia, que já não era moda desde os anos 60, ou uns collants de rede, à época, era o suficiente para ouvir frases do género: “A saia encolheu?” ou “Vais a pesca?”. Por usar os cabelos espetados, a máxima era: “Apanhaste um choque elétrico?” Estas, entre outras, reações davam conta da mentalidade dominante. Contudo, sempre nos “passou ao lado”. Umas vezes ignorávamos, outras ripostávamos e seguíamos, ou até nos ríamos!

Já há muitos anos que não sou fiel à estética, porque essa passou a ser para mim um aspeto secundário. Contudo, mantenho a mesma atitude anticonformista, contestatária e irreverente. Quando se é punk, é-se punk até morrer!


Ilda Teresa CastroQue impacto é que as bandas de Alvalade tiveram na época na vida do bairro?

Jorge Bruto — Tem de entender que essa é para mim uma pergunta complexa, daí que para responder tenho de contextualizar e voltar ao início de tudo.                                                      

Tudo começou na prancha do arquitecto que quis desenhar um bairro moderno, funcional, mas onde as pessoas gostassem de morar. Mas não vou perder tempo a falar da arquitectura do Bairro, ele já é dado como exemplo de um Bairro bem ordenado nas Aulas do curso de arquitectura.

Não, eu quero é falar da Alma do Bairro! As pessoas que vieram habitar este bairro, provinham de duas classes sociais distintas, separadas por um enorme fosso económico, como aquele que havia antes do 25 de Abril. A burguesia que se instalou nas principais ruas e Avenidas do Bairro, era uma burguesia moderna, eram pessoas que iam ao estrangeiro e que viviam bem.

Por outro lado, o mesmo arquitecto desenhou o novo bairro social para funcionários do estado, de baixo escalão e as pessoas foram colocadas nas casas usando o critério de: famílias maiores, casas maiores. Claro que as melhores iam para quem ganhava mais, mas todos estavam contentes de vir habitar casas novas, num bairro novo.

É verdade que as duas comunidades viviam de costas voltadas, havia os senhores doutores que frequentavam os cafés da Avenida e o Ti João e o Manel, nas tascas e cafés das traseiras do bairro. Mas no antigo regime, todos tinham de ir à escola e ter a quarta classe, e as escolas do Estado eram boas, tinham boas condições e era para onde ia toda a gente fosse filho de quem fosse.

Para nós, neste bairro, a experiência  democrática começou antes do 25 de Abril. Não era por termos mais dinheiro ou pais importantes que não levávamos nos cornos dos putos filhos do mecânico. Tínhamos de saber andar à pancada ou estávamos f******… Democracia no estado puro! E assim fomos criando amizades sem ter em conta as diferenças sociais de cada um e nos muitos jardins do Bairro, juntaram-se grupos de amigos que tinham as ruas e jardins do Bairro como casa e pátios de brincadeiras. Nunca estávamos em casa, a não ser se lá estivéssemos uns quatro ou cinco.

Era uma cultura diferente da actual, tínhamos grandes grupos de amigos e passávamos os dias juntos, longe de casa e dos nossos pais.

Depois aconteceu o 25 de Abril. Ora a minha geração tinha 10 anos no 25 de Abril e com 10 anos o mundo é fantástico e mágico, e quando vemos o nosso pai de lágrimas nos olhos a gritar por um mundo novo, acreditamos! Acreditamos que esse mundo novo vai acontecer mas continuámos a ser educados à porrada e para nós nada mudou. Creio que foi por isso que o punk, esse grito de revolta contra o sistema, teve terreno fértil em Alvalade, mas isto é apenas uma teoria minha.

Continuando, os grupos de amigos transitaram da ditadura para a democracia sem sequer darmos por isso e ali estávamos nós, em 1980, com 16 anos, a comprar o Melody Maker, um jornal gigante que vinha de Inglaterra para a Livraria Barata e a mandar vir discos. Foi assim que descobri muitas das bandas que ainda hoje gosto. Essa audição privilegiada da música, produziu o fenómeno de querermos fazer música como a que ouvíamos e mais o facto de pertencermos a famílias que podiam suportar os preços astronómicos, pelo menos para a bolsa portuguesa, dos instrumentos e amplificadores.

Claro que morarmos em Alvalade tornou a experiência musical acessível a mais putos. Mas também influenciámos o Bairro, a começar na forma de vestir. Saíamos à rua e era uma festa, todos olhavam e faziam comentários, éramos extremamente mal vistos e éramos tidos como uma ameaça à sociedade, mas a pouco e pouco fomos educando as pessoas.

Ainda hoje, é o Bairro de Lisboa onde se pode andar na rua como se quiser, que ninguém diz nada ou olha de lado. E isso, fomos nós que ensinámos. No geral, ajudámos a tornar este bairro uma Europa moderna, como é hoje em dia.


Ilda Teresa CastroComo foi viver a experiência da música e dos Anos 80 em Portugal e mais concretamente em Lisboa? Que conquistas, impactos e dificuldades, das bandas, dos grupos e da pessoa, nomeadamente sendo mulher, numa cultura tradicionalmente conservadora?

Xana — No período pós-revolucionário da década de 80, em que os termos emancipação e autodeterminação estavam na ordem do dia proporcionou-se, no âmbito da música, a possibilidade de alguns adolescentes e jovens adultos formarem grupos que eram como “empresas” que os próprios geriam. Sei que a experiência em questão não se estendeu a todas as actividades, mas vale a pena referi-la pela seguinte razão. Há alternativa à experiência da competição. Na nossa ingenuidade fomos sábios. Se competíssemos com os elementos do grupo sabíamos que o projecto não sobreviveria, e se a competição se estendesse a outros grupos, a actividade desmoronaria. Uma actividade não se sustenta apenas com dois ou três dos que não foram eliminados, e se a actividade desmoronasse também os vencedores colapsavam.

Na minha perspectiva, a quase inexistência de competição foi um dos motivos para o relativo sucesso da actividade de músico na década de 80. A competição à maneira ultraliberal só deu entrada na “indústria” em meados da década de 90, mas dela não quero falar, prefiro sublinhar que há alternativas à competição, porque a vivenciei. Houve estímulo e muito juízo crítico, e crítica não se confunde com competição, é um modo diferente de avaliar projectos e progredir, aprende-se a ouvir. Na competição não se escuta ninguém, desconfia-se.

Não trabalhei para um patronato, é verdade, o projecto era nosso, as editoras, as agências de gestão, entre outras entidades, considerava-as unidades colaboradoras. Os projectos eram discutidos, livremente, em debates bastante acesos, mas nada me foi imposto, ninguém me mandou calar, não tenho denúncias a fazer, outras pessoas terão. Todas as causas pelas quais me bati expressei-as, todas as injustiças que presenciei reportei-as, os jornais ou outros arquivos da época comprovam-no. De resto, o país estava uma lástima, consequência de 40 anos de fascismo, que submeteu homens e mulheres a um atraso incomensurável, grande parte da população era analfabeta. Estava enraizado um comportamento beato, autoritário e intolerante num número significativo de adultos da década de 80. E hoje ainda há traços desse mesmo comportamento, o qual muitas de nós quisemos combater. Mas o que esperar de humanos que foram submetidos à experiência de um regime fascista? Vítimas ou produto de um programa de horror, pressenti que muitos deles dificilmente mudariam e, por isso, avante, faltava tempo para gastar no passado, havia uma oportunidade para transformar tudo na liberdade recentemente conquistada.

A atitude de indiferença relativamente ao que se desprezava era muito típica dos anos 80, e tinha a sua eficácia. Significa que se vivia numa bolha? Não. Apenas se respondia com a atitude contrária à que se desprezava, na maneira de vestir, na assertividade, nas provocações, nos projectos, na realização de eventos. A resposta estava na alternativa que se apresentava. Ouvia muito frequentemente “não digas, faz tu mesma”, e no que se fizesse estaria, em princípio, a denúncia e a alternativa. Continuam lá. Este tipo de assertividade na forma de um fazer contínuo possibilitou o desenvolvimento de inúmeras propostas singulares e contrárias às desenvolvidas no passado, nem todas primavam pela qualidade, mas na maioria delas acenava-se ao não conformismo, à autodeterminação. Não significa que o campo estivesse livre de obstáculos, de tensões entre pólos opostos, razão pela qual também se apelava a avançar para a linha de frente, não na forma de seguidismo, não me parece que alguém estivesse interessado em seguir um líder, um iluminado, uma teoria, cada um avançava como queria e sabia. Era até divertido olhar para a diversidade dos “combatentes”, não estavam uniformizados.

Alguns dos meus colegas mencionam a questão do ‘empreendedorismo na actividade musical’, muito devido ao facto de as pessoas dos projectos se constituírem detentoras dos mesmos e de não dependerem de subsídios. Concordo, mas com a salvaguarda de que este ‘empreendedorismo’ não configurava o actual, e como tal esta palavra esvaziou o significado que lhe fora antes atribuído, pelo menos nos projectos que conheci e naqueles em que me envolvi. Há alternativa, insisto. Acresce existir um tipo de crítica muito aguçada na época, penso que gostávamos desse espírito crítico, originava debates interessantes sobre os processos de composição, mas também sobre o processo formativo de uma sociedade que estava e ainda está, na minha perspectiva, a constituir-se.