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Do Punk ao Near Silence I | 8º ciclo

Do Punk ao Near Silence I

8.º ciclo de visionamentos comentados

Do Punk ao Near Silence I é um ciclo de visionamentos comentados, programado, produzido e apresentado por Ilda Teresa Castro, onde se mapeia o encontro entre o cinema, a música e a cidade de Lisboa, que terá as três primeiras sessões a decorrer no Teatro Municipal de São Luiz e uma quarta sessão na Videoteca Municipal de Lisboa.

Cada sessão deste ciclo começa com uma curta-metragem, segue com uma conversa com músicas e músicos, realizadores e autores, radialistas e especialistas da tipologia musical em foco, e conclui com uma longa-metragem, excepto a quarta sessão que não incluirá a longa-metragem final.

No pós-25 de Abril e início dos anos 80, a emergência em Lisboa do Punk, pós-Punk e Pop e Rock português está na origem de uma mudança musical que foi simultaneamente estética, sociocultural e política – e contaminou o resto do país. Patente nos comportamentos, atitudes e vivências, esta movida transversal envolveu espaços de alguns bairros da cidade, ligados pela música como impulso comum.

O programa reúne, assim, um conjunto de documentários que reconstituem esses momentos históricos e essa memória.


Teatro Municipal São Luiz
Sala Mário Viegas

Sábados, 19:30, 20:00 e 21:30
(A classificar pela CCE)

Entrada livre sujeita à lotação da sala.
Bilhetes disponíveis na bilheteira do Teatro no próprio dia, a partir das 15:00
(máximo 2 por pessoa)

Arquivo Municipal de Lisboa | Videoteca
Sábados, 17:00
(A classificar pela CCE)

Entrada livre sujeita à lotação da sala.

7 OUTUBRO


19:30

Arquivos Kino-Pop1 Vol7 – Censurados
Edgar Pêra, 2019, 30´
Produção: Rodrigo Areias/ Bando à Parte

20:00

CONVERSA comentada por Paula Guerra e Ilda Teresa Castro com
David Francisco
Iolanda Batista
Nazaré Pinela
Nuno Calado

Intervalo 30 min.

21:30

Fantasma Lusitano
David Francisco, 2016, 57´
Nuno Calado (autor)
Produção: Moopie

 

14 OUTUBRO


19:30
Arquivos Kino-Pop1 Vol1 – Pedro Ayres  Magalhães
Edgar Pêra, 2019, 30´
Produção: Rodrigo Areias / Bando à Parte

20:00

CONVERSA comentada por Ana Cristina Ferrãoe Ilda Teresa Castro com
Luís Carlos Amaro
Ricardo Espírito Santo
Rui Pregal da Cunha
Ondina Pires

Intervalo 30 min.

21:30

Rock Rendez Vous – A Revolução do Rock
Ricardo Espírito Santo, 2014, 44’ Luís Carlos Amaro (autor)
Produção: Terra Líquida Filmes

 

21 OUTUBRO


19h30

Arquivos Kino-Pop1 Vol4 – Manuel João Vieira & Irmãos Catita
Edgar Pêra, 2019, 30´
Produção Rodrigo Areias/ Bando à Parte

20:00

CONVERSA comentada por Vítor Rua e Ilda Teresa Castro com
João Peste
Luís San Payo
Miss Suzie
Xana

Intervalo 30 min.

21:30

Ainda Tenho um Sonho ou Dois – A História dos Pop Dell´Arte
Nuno Duarte, 2018, 54´
Nuno Galopim (autor)
Antena 3

 

9 DEZEMBRO


17:00

Arquivos Kino-Pop Vol 2 Xutos & Pontapés 1985-1986 (VERSÃO INÉDITA)
Edgar Pêra, 2023, 30’
Produção Rodrigo Areias/Bando à Parte

17:30

Conversa comentada por Ilda Teresa Castro com:
Alexandre Gonçalves
Anabela Mayor
Gimba
João Gata
Luiz Morgadinho
Maria João
e Paulo Morgado

ARQUIVOS KINO-POP VOL2.: XUTOS & PONTAPÉS
Neste episódio dos Arquivos Kino-Pop imagens inéditas das rodagens do filme “Um Dia Destes” com a banda Xutos & Pontapés em 1986 em Benfica e o concerto na Sociedade Rio de Janeiro no Bairro Alto em 13 de Setembro de 1985.

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1 Arquivos Kino-Pop, arquivos de Edgar Pêra com músicos oriundos da década de oitenta: Censurados (banda punk liderada por João Ribas), Pedro Ayres Magalhães (fundador das bandas Faíscas, Corpo Diplomático, Heróis do Mar, Madredeus e Resistência), Manuel João Vieira e os Irmãos Catita (artista plástico e fundador ainda das bandas Ena Pá 2000 e Corações de Atum) e Xutos & Pontapés.

 

Arkivos Kino-Pop


Arquivos Kino-Pop, os arquivos de Edgar Pêra com músicos oriundos da década de oitenta: Censurados (banda punk liderada por João Ribas), Pedro Ayres Magalhães (fundador das bandas Faíscas, Corpo Diplomático, Heróis do mar, Madredeus e Resistência), Manuel João Vieira e os Irmãos Catita (artista plástico e fundador ainda das bandas Ena Pá 2000 e Corações de Atum) e Xutos & Pontapés.

 

FANTASMA LUSITANO

David Francisco, 2016, 57´
Nuno Calado (autor)
Prod. Moopie

"Fantasma Lusitano" é um documentário sobre Jorge Bruto, nome incontornável do punk em Portugal. A história do frontman dos Capitão Fantasma, Emílio e a Tribo Do Rum, Bruto and the Cannibals e Club Sin.

 

ROCK RENDEZ VOUS – A REVOLUÇÃO DO ROCK

Ricardo Espírito Santo, 2014, 44’
Luis Carlos Amaro (autor)
Prod. Terra Líquida Filmes

O principal clube de rock português foi o lugar simbólico de todas as alterações culturais que transformaram e urbanizaram a sociedade portuguesa. O advento do rock português, as mudanças nos comportamentos, as novas modas e as alterações culturais podem ser contadas a partir das noites do Rock Rendez Vous. Tal como as trombetas de Jericó derrubaram as muralhas bíblicas, os acordes do rock rebentaram com barreiras sociais em Portugal e assinalaram o advento de uma sociedade jovem num país, que devido à ditadura, não tinha vivido as grandes convulsões culturais e sociais dos anos sessenta e setenta. O documentário sobre o Rock Rendez Vous recupera um conjunto de imagens, na posse de particulares e instituições, que nos fazem viajar durante a década em que a fábrica do rock português esteve aberta. Na sucessão destes dias de música, mostram-se as grandes mudanças culturais, sociais e políticas que o Rock Rendez-Vous ajudou a produzir. Zé Pedro dos Xutos, Rui Pregal da Cunha (Heróis do Mar), Rui Veloso, Rui Reininho, Xana dos Rádio Macau, Adolfo Luxúria Canibal, António Manuel Ribeiro (UHF), Miguel Cadete (diretor do Blitz), Edgar Pêra, João Peste, Ana Cristina Ferrão mulher de António Sérgio, Rui Vasco (fotógrafo), críticos musicais e muitos outros, protagonizam a história da mais celebrada sala de concertos do País.

 

AINDA TENHO UM SONHO OU DOIS – A HISTÓRIA DOS POP DELL´ARTE

Nuno Duarte, 2018, 54´
Nuno Galopim (autor)
Antena 3

Com mais de 30 anos de existência, os Pop Dell´Arte pautam-se por uma forte componente eclética e subversiva. Incorporaram na sua música referências como o Cinema, a Performance, a Poesia e toda uma gama de temas que, até à sua criação, nunca tinham sido abordados na música portuguesa. "Ainda Tenho Um Sonho ou Dois – A História dos Pop Dell’Arte" é um documentário com o carimbo Antena3Docs, da autoria de Nuno Duarte e Nuno Galopim, que tenta retratar a atribulada carreira de 30 anos dos Pop Dell’ Arte. Eles que são uma das bandas mais importantes da nova música portuguesa, liderada por João Peste, uma das figuras icónicas da pop portuguesa.

O documentário resume o que foram as mais de três décadas de existência desta banda lisboeta, desde os primeiros passos no mítico Rock Rendez Vous, à criação da editora independente Ama Romanta, até aos dias de hoje.

 

ARQUIVOS KINO-POP VOL2.: XUTOS & PONTAPÉS

Arquivos Kino-Pop Vol 2
Xutos & Pontapés 1985-1986 (versão inédita)
Edgar Pêra, 2023, 30’
Produção Rodrigo Areias/Bando à Parte


Neste episódio dos Arquivos Kino-Pop imagens inéditas das rodagens do filme “Um Dia Destes” com a banda Xutos & Pontapés em 1986 em Benfica e o concerto na Sociedade Rio de Janeiro no Bairro Alto em 13 de Setembro de 1985.

Programação: Ilda Teresa Castro

Coordenação: Fernando Carrilho

Produção: Ilda Teresa Castro

Design: Joana Pinheiro

Montagem Fotográfica: Fátima Rocha

Som de Régie: Pedro Lourenço, Álvaro Silva

Comunicação: Pedro Cordeiro e Susana Santareno

Secretariado: Sofia Macedo, Manuela Martins

Apoio de serviços da CML: Divisão de Gestão de Frota; Secretaria Geral - Imprensa Municipal


Organização: Câmara Municipal de Lisboa
Vereação da Cultura: Diogo Moura
Direção Municipal de Cultura: Laurentina Pereira
Departamento de Património Cultural: Jorge Ramos de Carvalho
Divisão de Arquivo Municipal: Helena Neves
Arquivo Municipal de Lisboa – Videoteca: Fernando Carrilho
Coapresentação: Videoteca do Arquivo Municipal de Lisboa e São Luiz Teatro Municipal

Contributos para um mapeamento


1.
Será o Rock Rendez-Vous o clube de música rock mais icónico de sempre? - pergunto-me quando oiço o lamento “que falta faz ter hoje um RRV”. Percorrendo o mesmo trilho estético tivemos anos depois o Johnny Guitar, no entanto quando a saudade aperta, dos tempos em que para “encontrar a família Rock´n´Roll” bastava dar “um pulo” ao Rego, sem dúvida que o RRV tem um espaço único reservado no nosso coração.

2.
Dezembro de 1980, ano da inauguração do RRV. Tinham passado escassos 6 anos depois da revolução, a transformação social e ideológica de Portugal assumia particular notoriedade na juventude ávida de se aproximar das suas congéneres europeias e americanas – faróis da estética inovadora. O espaço urbano lisboeta era contaminado por diversas representações juvenis de inovação, transgressão e subversão, já com forte expressão artística nacional. Foi este contexto que acolheu a oportunidade de criar o Rock Rendez-Vous, afilhado do Marquee londrino e do CBGB´s nova-iorquino, trouxe a estética rock para o quotidiano português, abrindo portas aos músicos, antes confinados às suas garagens-salas de ensaio e ao público ávido de viver a noite dançando, saltando e inebriando-se com altos decibéis.  

3.
Atitude, estilo, moda, começam lentamente a fazer parte da preocupação de uma juventude antes espartilhada nas calças de caqui e nas camisas aos quadrados. 

Adeus, monotonia. Adeus, bom comportamento. 

As correntes e os alfinetes saem à rua. O preto impõe-se como cor. Os olhos rasgam-se com eyeliners grossos. Os cabelos enchem-se de gel e de cores vibrantes. Vêm dos bairros limítrofes de comboio - chegam ao Cais do Sodré. Vêm do Norte e do Sul - chegam a Sta.  Apolónia. Bandos de jovens percorrem Lisboa, atravessam a Praça de Espanha e seguem até ao Rego. Mulheres ainda poucas, mas decididas a abanar o mundo e a pequenez patriarcal nacional. 

Faz-se barulho, fazem-se amigos, criam-se bandas novas. Lisboa vibra, é noite de ir até ao Rego, é noite de Rock Rendez-Vous. 


Apesar de terem sido anos fervilhantes, existem poucos registos em filme ou vídeo da cena musical de Lisboa no final dos anos 70, inícios dos 80. O punk e o pós-punk em Portugal contam-se em música, texto e fotografia, mas poucas vezes em imagens em movimento. Muitos dos poucos registos em filme ou video feitos na época, gravações de concertos e entrevistas em programas de televisão, acabaram deteriorados ou sacrificados na altura da poupança de recursos e reutilização de cassetes, alguns, eventualmente, continuarão perdidos em arquivos à espera de serem descobertos.

No presente, e no futuro, certamente, podemos criticar o excesso de vídeos e imagens que documentam concertos, entrevistas e todo o tipo de fenómenos musicais, locais e globais, mas também há que lamentar a nossa falta de memória visual do passado e fazer pela preservação e divulgação da pouca que existe.

Por isso, este ciclo de filmes e conversas é tão importante.

Ver os filmes e conhecer a história e motivações dos seus protagonistas é uma maneira de perceber melhor as dinâmicas socioculturais que permitiram a existência de uma cena musical que agitou vários bairros de Lisboa, assumindo diferentes expressões, mas tentando sempre romper com a norma.

De algum, ou vários modos, os ecos desses dias e dessa música, continuam a estender-se até aos dias de hoje.


Génese do punk em Portugal: entre o local e o global

Em Portugal, a Revolução de abril de 1974 funcionou como um catalisador de vontades, de reivindicações e de manifestações, e, assim foi favorável ao eclodir das primeiras manifestações punks em Portugal.

Na cidade de Lisboa, existiam pequenos grupos de jovens que mantinham contactos sistemáticos com as novidades (discos, roupas, bandas, revistas…) internacionais. Foi junto desses grupos que se localizou a vontade de ser punk, pondo em causa a noção, comummente aceite, de que o movimento punk surgiu espontaneamente da raiva da classe operária contra o sistema.

Em dezembro de 1977, António Sérgio assinalava a saída do primeiro single punk prensado em Portugal na Música & Som desse mesmo mês: “O perigo alastrou repentinamente e todo o mundo se pode muito bem ver incapaz de domar ou montar, seja de que maneira for, a ONDA. Saiu o 1.º single punk, prensado em Portugal”.

Em fevereiro de 1978 realizou-se a “primeira tarde” punk em Lisboa, no Archote Clube no Arco do Cego. Neste primeiro evento público de punk, houve passagem de discos, ainda não houve atuação de bandas. Mas o punk estava lançado em Portugal.

Não sendo propriamente um movimento, os primeiros grupos punk portugueses aparecem em finais da década de 1970 — Aqui d’El Rock, Faíscas, UHF, Xutos & Pontapés, Minas & Armadilhas, Raios e Coriscos — nestes escassos eventos, mostrando grande vivacidade e mobilização de protagonistas e seguidores; exemplos claros de focos de mudança e de penetração do punk e seu ideário em Portugal.

De forma muito circunscrita a Lisboa e restrita em termos temporais, os concertos vão continuando. É a partir daqui que o punk em Portugal conquista o seu espaço, abrindo caminho para os primeiros concertos de bandas punk estrangeiras em solo nacional (logo dos Ramones em 1980, por exemplo) e um percurso marcado por altos e baixos e metamorfoses constantes, mostrando uma reapropriação local do punk global. O que nos conduz a duas considerações: o punk rock é um claro exemplo de hibridismo cultural, pois ele não é igual em todo o lado; o punk rock é moldado e redefinido localmente, consoante os recursos e as necessidades sociais e políticas desses locais, num processo que mistura características do punk global e os elementos locais.

Ainda a propósito da configuração originária do punk português, podemos adiantar que entre formar bandas e dar concertos, tudo parece assumir uma forma marcada pelo do-it-yourself (DIY) em que toda a estrutura é partilhada e posta em funcionamento pelos próprios protagonistas. Aliás, esta é uma condição necessária para que o punk exista. O DIY promove a criação de música e as iniciativas locais e surge, num primeiro momento, como uma alternativa à música comercial e, num segundo momento, como uma forma de os atores sociais revelarem a sua total oposição às grandes produtoras de música que só se regem pelos lucros e que fizeram com que a diversidade musical, assim como as maneiras de produzir e de falar sobre música, fossem bem circunscritas.


Ainda Tenho Um Sonho ou Dois ou Revisitar a História de João Peste & Pop Dell´Arte 

João Peste, ícone incontornável da música portuguesa dos anos 1980, deixou uma marca indelével tanto como músico quanto como editor. À frente da banda Pop Dell´Arte e da editora underground Ama Romanta, Peste impulsionou uma revolução cultural que desafiou as normas estabelecidas e abriu novos horizontes para a música alternativa em Portugal. Na dualidade de sua obra, destaco a influência transformadora da sua música e a coragem das suas iniciativas editoriais.

Parte 1: "Ama Romanta: O Sonho Underground de João Peste" 

Nos anos 1980, Portugal emergia de um período de revolução e transformação. A cena musical, em particular, estava em pleno processo de renovação, procurando uma identidade própria após décadas de ditadura. João Peste, uma figura visionária e ousada, surgiu como um farol na escuridão, fundando a editora Ama Romanta, em 1986.  

Ama Romanta não era apenas uma editora; era um movimento contracultural, uma tentativa de romper com a estagnação musical que prevalecia no país. A tarefa de gerir uma editora independente naquela época era hercúlea. A indústria musical portuguesa estava dominada por grandes editoras que ditavam as regras do mercado, e a distribuição era limitada e difícil. As lojas de discos eram escassas, e os meios de comunicação davam pouco espaço à música alternativa. Ainda assim, João Peste e a sua equipa não se deixaram abater e a Ama Romanta lançou obras que se tornaram icónicas no panorama musical português, como o álbum “Plux Quba” de Nuno Canavarro, ou “Songs Against Love And Terrorism”, de Sei Miguel. A editora deu voz a uma geração de músicos que, de outra forma, poderiam ter permanecido na obscuridade. Cada lançamento era uma declaração de independência e uma celebração da criatividade sem limites. 

Parte 2: "Pop Dell Arte: Exploradores do Cosmos Musical" 

Simultaneamente à sua atividade na Ama Romanta, João Peste liderava a banda Pop Dell ´Arte. Fundada em 1985, a banda rapidamente se destacou pela sua originalidade e coragem em explorar novos territórios musicais. Numa época em que o mainstream português era dominado por baladas e pop fácil, os Pop Dell´ Arte trouxeram uma mistura eclética de art rock, new wave e experimentalismo. O seu álbum de estreia, "Free Pop", lançado em 1987, é um marco na história da música portuguesa. Com faixas que desafiavam as convenções e uma estética que misturava o avant-garde com o pop. "Free Pop" foi uma lufada de ar fresco. Canções como "Sonhos Pop" e “Querelle", tornaram-se hinos de uma geração que ansiava por algo novo e excitante, e ao longo dos anos, os Pop Dell´ Arte continuaram a inovar e a surpreender. Álbuns como "Ready-Made" (1993) e "Contra Mundum" (2010) demonstraram a capacidade da banda se reinventar e permanecer relevante. A banda nunca se contentou em seguir o caminho mais fácil, preferindo sempre desafiar as normas e explorar novas fronteiras musicais. 

A coragem de João Peste e dos Pop Dell´ Arte em sair do mainstream português não pode ser subestimada. Numa época de conformismo, eles optaram pela diferença, pela experimentação e pela autenticidade, e as suas obras são um testemunho do poder da música como forma de expressão e de resistência.

Conclusão

João Peste e os Pop Dell Arte são um exemplo brilhante do que pode ser alcançado quando a paixão e a visão se unem. A Ama Romanta e os discos dos Pop Dell´ Arte, não são apenas artefactos de uma era, são pedras preciosas na coroa da música portuguesa, brilhando com a luz de uma criatividade indomável. Na sinfonia cósmica de João Peste, encontramos não apenas música, mas a essência de uma revolução cultural. João Peste, na sua dualidade, encarnou uma vida dedicada à Música. Com Ama Romanta, abriu portas a uma nova geração de artistas. Com Pop Dell´ Arte, mostrou-nos que a música pode ser uma forma de arte profundamente filosófica e emocional. A sua obra continua a inspirar e desafiar, lembrando-nos que a verdadeira inovação nasce da coragem de revolucionar e de se expressar sem restrições. E assim, nesta sessão Do Punk ao Near  Silence, celebramos a coragem de um músico e de uma banda, com a ousadia de sonhar, criar e transformar. 


Ilda Teresa CastroNos anos 80, participaste nos ensaios de uma banda de garagem de amigos e estiveste próxima da cena punk lisboeta, acompanhando grupos icónicos como os Kú de Judas e os Crise Total. Em 1987/88, com as Cotonetes, fizeste coros para os Afonsinhos do Condado, e em 1989 acompanhavas os Peste & Sida. Ser uma rapariga punk nesse período, num contexto de uma sociedade portuguesa ainda conservadora, era, sem dúvida, um ato de resistência. Como viveste essa experiência em termos sociais na cultura tradicional lisboeta? Quais foram as conquistas que alcançaste, os impactos que geraste, e que reações ou dificuldades enfrentaste por desbravares caminho num meio tão contra-cultural e predominantemente masculino?

Iolanda Batista — Ser punk nessa época (anos 80) era, sobretudo, um ato de coragem! Defendíamos a afirmação de uma identidade que marcava a diferença em relação ao “cinzentismo” que ainda se via e sentia neste país, recém-libertado de um longo período de ditadura.

Independentemente do género, diferenciávamo-nos, principalmente, por andarmos em bando, pela estética e pela atitude, provocadora e rebelde, à semelhança do que já vinha a acontecer noutros países europeus onde o movimento punk havia florescido.

Eramos pacíficos, mas as pessoas assustavam-se connosco. A nível social, as reações sucediam-se, a mentalidade dos portugueses era ainda muito tradicional e conservadora. A nós dava-nos até um certo gozo provocar essa reação. As pessoas precisavam de um “abanão”, de abrirem horizontes. Enquanto jovens, queríamos apenas viver como os jovens de outros países europeus, numa sociedade mais evoluída, ao nível social, cultural e do pensamento. Regularmente, ouvíamos comentários depreciativos em relação à nossa imagem quando andávamos na rua ou nos transportes públicos. Para que se possa perceber, usar uma minissaia, que já não era moda desde os anos 60, ou uns collants de rede, à época, era o suficiente para ouvir frases do género: “A saia encolheu?” ou “Vais a pesca?”. Por usar os cabelos espetados, a máxima era: “Apanhaste um choque elétrico?” Estas, entre outras, reações davam conta da mentalidade dominante. Contudo, sempre nos “passou ao lado”. Umas vezes ignorávamos, outras ripostávamos e seguíamos, ou até nos ríamos!

Já há muitos anos que não sou fiel à estética, porque essa passou a ser para mim um aspeto secundário. Contudo, mantenho a mesma atitude anticonformista, contestatária e irreverente. Quando se é punk, é-se punk até morrer!

Ilda Teresa CastroEm 1985 foste um dos quatro criadores dos Amenti, uma banda totalmente electrónica que surgiu numa cave na Avenida EUA e deu vários concertos em Lisboa, incluindo no Rock Rendez-Vous. Seguiu-se a banda V Império, cujo primeiro álbum teve mais de 10.000 discos vendidos em três meses no Inverno de 1997, com um videoclipe no top 3 no canal francês "Arte", e concertos em Espanha com um quinteto de cordas e sopros. Retrospectivamente, como recordas esses tempos e que vivências dessas décadas subsistem como determinantes na tua vida e na tua relação com a Música?

João Gata — Tive a fortuna de fazer 15 anos em 1980 numa Lisboa que acordava de um longo torpor. Idade que me permitiu ir às matinés das discotecas clássicas, como o Porão da Nau, e RRV. Um pouco mais tarde, um Bairro Alto de gráficas, tascas, leitarias e casas de fado, começava a abrir ruas à malta que procurava outras sonoridades. Fiz parte do grupo que "abriu" muitas casas e que as enchia, primeiro durante as tardes, depois à noite. Relembro o Lábios de Vinho, Rockhaus (depois Jukebox), Bartis, Páginas Tantas, depois o Ocarina (onde fui DJ durante a semana), Três Pastorinhos, e, naturalmente, o Frágil. No meio disto havia mais lugares onde se conversava no meio de copos, ou se jogava matrecos (Joe chinês) ou se discutiam futuros (Targus).

Já nos meus 20, era notória a abertura da cidade nocturna que englobava a vizinhança, como o Cais do Sodré e o seu Tokyo ou Jamaica, as Noites Longas onde tudo terminava, antes da moda do Plateau.

Este fervilhar noctígavo era moda e cultura, amizade e companheirismo. Parecia que todos fazíamos parte do mesmo grupo, com os mesmos gostos e interesses. E isto leva-me à música. Se o BA nos deu alternativa musical, muito alimentada por nós próprios e com publicações fantásticas como o Blitz, Música&Som, Se7e e etc., tive também outras duas sortes na adolescência que tudo forma: conhecer a malta que fazia a rádio pirata dos Olivais, e ser amigo dos irmãos Leite (São Pedro do Estoril). Se com os primeiros tive acesso a um catálogo de lançamentos mensais de discos no mercado norte-americano (e cada um de nós comprava um disco que lá deixava para serem feitas cópias para cassete), com o Pedro e o Luis Leite (ainda hoje DJs de topo) tive oportunidade de ouvir discos que me formavam e formaram, como os primeiros álbuns de bandas como Tears for Fears, Spear of Destiny, Nitzer Ebb, DAF, EBTG, centenas, dos quais fazia as minhas cassetes. Se me perguntares como cheguei aos meus "dois amores", Sakamoto e Japan, não me lembro. Era uma enxurrada informativa e sensorial extraordinária.

Como passei a ser eu, também, parte da cena musical à altura? Bom, como disse, Lisboa fervilhava com música, cinema, teatro, havia palcos, espaços, respirava-se cultura, liberdade. Havia uma enorme vontade de fazer algo. O entusiasmo era generalizado, ou pelo menos, nestes meios por onde andei e onde fiz muitos amigos.

Nasci em Alvalade e, devido a vários fatores sociais, este bairro foi um centro de ideias e novos grupos de pop e rock. Nem vou fazer a lista de quem tocava desde a Av. Dom Rodrigo da Cunha, ao R/C do Cinema Alvalade, passando pelo terraço do cruzamento entre a Av. Roma e a Av. EUA. E era nessa avenida EUA que existia (e acho que ainda existe) uma cave com alguma insonorização que era usada, mediante um pagamento, por diversas bandas. Os Amenti foram uma delas.

Ao ler toda esta vivência, a pergunta mais lógica seria "como não ser músico" numa altura destas?

Ilda Teresa Castro Na tua perspectiva, como é que a emergência do punk, pós-punk e pop e rock foram determinantes nas vivências do teu bairro e na própria cidade de Lisboa?

João Gata — Como referi, Alvalade tinha condições sociais (e físicas) para ser um ninho de projectos: a classe média tinha algum dinheiro para poder comprar um instrumento ao filho, e havia espaços como garagens, caves e terraços para se poder ensaiar.

Até o meu liceu, o Padre António Vieira, ao contrário dos demais, apostava nas bandas cujos membros eram estudantes.

Se na Dom Rodrigo da Cunha se ouviam os Croix Saint, na Av. de Roma o leque abria-se desde os "betinhos" Sétima Legião e Corpo Diplomático (que deram lugar aos Heróis do Mar), aos "punks" Censurados e Kú de Judas. Pelo meio, malta mais pop e outra mais electrónica, como os Amenti, com referências óbvias aos Kraftwerk e Depeche Mode.

Esta grande misturada trouxe muitas amizades mas também algumas inimizades, como seria de esperar com facções tão diferentes e gostos tão defendidos. Mas foi todo este caldeirão que fez de Alvalade um bairro conotado com o grande movimento do novo rock português. A cidade não fechou portas, muito pelo contrário. Se contar os projectos em que me envolvi musicalmente, conheci malta e ensaiei em espaços tão diferentes como a Meia Laranja e a Picheleira (algo complicados à altura). E sim, levava o sintetizador debaixo do braço em intermináveis viagens de autocarro. Nesses casos, conheci malta que depois fez parte de bandas muito orelhudas e ainda sorrio quando reencontro alguns figurões.

Não trocava a minha aventura por nenhuma outra, isso é certo.

Como comecei, termino: tive muita sorte em ter vivido os gloriosos anos 80 em Lisboa e com Lisboa.


Ilda Teresa CastroComo líder carismático dos Capitão Fantasma, banda que fundaste em 1988 após a tua passagem pelos Emilio e a Tribo do Rum em 1986, tornaste-te numa figura mítica do punkabilly, rockabilly, psychobilly e horrorbilly em Portugal. Refletindo sobre essa trajetória, que impacto tiveram as bandas de Alvalade na vida do bairro durante essa época? E qual foi a relevância de Alvalade enquanto território cultural para a emergência e afirmação dessas bandas num contexto mais amplo, marcado por uma Lisboa em plena transformação social e artística?

Jorge Bruto — Tem de entender que essa é para mim uma pergunta complexa, daí que para responder tenho de contextualizar e voltar ao início de tudo.                                                      

Tudo começou na prancha do arquitecto que quis desenhar um bairro moderno, funcional, mas onde as pessoas gostassem de morar. Mas não vou perder tempo a falar da arquitectura do Bairro, ele já é dado como exemplo de um Bairro bem ordenado nas Aulas do curso de arquitectura.

Não, eu quero é falar da Alma do Bairro! As pessoas que vieram habitar este bairro, provinham de duas classes sociais distintas, separadas por um enorme fosso económico, como aquele que havia antes do 25 de Abril. A burguesia que se instalou nas principais ruas e Avenidas do Bairro, era uma burguesia moderna, eram pessoas que iam ao estrangeiro e que viviam bem.

Por outro lado, o mesmo arquitecto desenhou o novo bairro social para funcionários do estado, de baixo escalão e as pessoas foram colocadas nas casas usando o critério de: famílias maiores, casas maiores. Claro que as melhores iam para quem ganhava mais, mas todos estavam contentes de vir habitar casas novas, num bairro novo.

É verdade que as duas comunidades viviam de costas voltadas, havia os senhores doutores que frequentavam os cafés da Avenida e o Ti João e o Manel, nas tascas e cafés das traseiras do bairro. Mas no antigo regime, todos tinham de ir à escola e ter a quarta classe, e as escolas do Estado eram boas, tinham boas condições e era para onde ia toda a gente fosse filho de quem fosse.

Para nós, neste bairro, a experiência  democrática começou antes do 25 de Abril. Não era por termos mais dinheiro ou pais importantes que não levávamos nos cornos dos putos filhos do mecânico. Tínhamos de saber andar à pancada ou estávamos f******… Democracia no estado puro! E assim fomos criando amizades sem ter em conta as diferenças sociais de cada um e nos muitos jardins do Bairro, juntaram-se grupos de amigos que tinham as ruas e jardins do Bairro como casa e pátios de brincadeiras. Nunca estávamos em casa, a não ser se lá estivéssemos uns quatro ou cinco.

Era uma cultura diferente da actual, tínhamos grandes grupos de amigos e passávamos os dias juntos, longe de casa e dos nossos pais.

Depois aconteceu o 25 de Abril. Ora a minha geração tinha 10 anos no 25 de Abril e com 10 anos o mundo é fantástico e mágico, e quando vemos o nosso pai de lágrimas nos olhos a gritar por um mundo novo, acreditamos! Acreditamos que esse mundo novo vai acontecer mas continuámos a ser educados à porrada e para nós nada mudou. Creio que foi por isso que o punk, esse grito de revolta contra o sistema, teve terreno fértil em Alvalade, mas isto é apenas uma teoria minha.

Continuando, os grupos de amigos transitaram da ditadura para a democracia sem sequer darmos por isso e ali estávamos nós, em 1980, com 16 anos, a comprar o Melody Maker, um jornal gigante que vinha de Inglaterra para a Livraria Barata e a mandar vir discos. Foi assim que descobri muitas das bandas que ainda hoje gosto. Essa audição privilegiada da música, produziu o fenómeno de querermos fazer música como a que ouvíamos e mais o facto de pertencermos a famílias que podiam suportar os preços astronómicos, pelo menos para a bolsa portuguesa, dos instrumentos e amplificadores.

Claro que morarmos em Alvalade tornou a experiência musical acessível a mais putos. Mas também influenciámos o Bairro, a começar na forma de vestir. Saíamos à rua e era uma festa, todos olhavam e faziam comentários, éramos extremamente mal vistos e éramos tidos como uma ameaça à sociedade, mas a pouco e pouco fomos educando as pessoas.

Ainda hoje, é o Bairro de Lisboa onde se pode andar na rua como se quiser, que ninguém diz nada ou olha de lado. E isso, fomos nós que ensinámos. No geral, ajudámos a tornar este bairro uma Europa moderna, como é hoje em dia.

Ilda Teresa Castro — Desde o início dos anos 80, estiveste presente na música moderna portuguesa, destacando-te como baterista, vocalista e compositora em projetos tão marcantes como Ezra Pound e a Loucura, Pop Dell’Arte, The Great Lesbian Show e no Coletivo Artístico Cellarius Noisy. A tua trajetória deu-se num contexto de forte tradição conservadora, onde o espaço para a expressão feminina na música era limitado. Olhando agora para trás, como descreves a tua vivência na vibrante cena musical dos anos 80 e 90 em Portugal, e particularmente em Lisboa, num período de mudança cultural e social tão profundo? Quais foram as tuas conquistas, os impactos que sentes ter provocado e as dificuldades específicas que enfrentaste, enquanto rapariga e mulher, numa indústria e cultura historicamente dominadas por homens?

Ondina Pires - Uma pequena história...

Numa pequena estante, na sala de estar, encontravam-se dossiês repletos de memórias. Catarina Patrício, artista plástica, professora universitária, mãe de família e ex-aluna de Ondina pegou num deles que dizia na lombada “Ezra Pound e a Loucura, Pop dell’Arte e The Great Lesbian Show” e abriu-o.

Recortes de notícias, fotografias, flyers dos concertos e algumas reflexões da sua autora provocaram em Catarina uma vontade de saber mais sobre os já longínquos anos 1980 e 1990 da “movida” musical portuguesa e, sobretudo, como era a vida das raparigas que tinham estado em bandas, fossem elas mais Pop mainstream, fossem mais “apunkalhadas” ou/e experimentais:

— Gostava tanto de ter sido jovem nos anos 80… era tudo mais giro do que atualmente. Como era ser uma miúda que quisesse pertencer a um grupo musical? Havia discriminação? Era fácil? Como é que foi ser baterista, vocalista e, ainda, compor alguns temas? Tinhas bateria? — perguntou Catarina.

— Heheh, tantas perguntas! Ui! Espera, espera, deixa-me pensar senão vou parecer a senhora idosa do anúncio do azeite Galo. — e Ondina começou a imitar a tal senhora, exagerando tudo — Já em 1385 que eu cantava de Galo (risos de ambas). Ok, vou agora responder o melhor possível. Nada era fácil. No início dos anos 80, Portugal estava em maus lençóis no que diz respeito à economia. Havia os ecos revolucionários do 25 de abril de 1974, os quais já não surtiam grande efeito numa parte mais criativa da minha geração, havia também os ecos do Punk de 1976 que influenciaram muitos desses jovens, existia a ideologia libertária de esquerda e também a ideologia de extrema direita com os skinheads que procuravam imitar os ingleses do National Front. Poucos músicos tinham facilidade de comprar instrumentos musicais e eu era um deles. Nunca tive uma bateria. Não posso afirmar que as bandas maioritariamente constituídas por rapazes não quisessem a presença feminina. Não tenho dados estatísticos acerca disso, apenas pequenas conversas informais que ia tendo com amigos e conhecidos.

— Então, como é que fazias para praticar, ensaiar e depois tocar ao vivo numa bateria ou cantar? — perguntou, de novo, Catarina.

— Para te responder a isso, tenho de recuar ao final dos anos 1970. Dois colegas e amigos do Liceu Camões, o Zé Pedro e o Fernando, formaram comigo um incipiente grupo que chamámos de Hullaballoo. Nunca passámos dos ensaios no quarto do Zé, onde foi colocada uma bateria emprestada por outro colega do Camões e o qual trabalhava na casa de ensaios Senófila, perto do Conde Redondo. Poucos anos mais tarde, iria ensaiar aí, entre outros sítios. Não pudemos avançar no projeto porque os vizinhos do Zé não permitiram os ensaios. E tocávamos aos sábados à tarde! O Fernando andou durante meses a trabalhar nas obras de construção civil para poder comprar a guitarra. Em 1982, através da Cristina Duque, minha colega de Liceu e que ficou conhecida como Cristina “Psico” na banda Dead Dream Factory”, apresentou-me a Jorge Ferraz. Houve uma afinidade nos gostos musicais e literários e assim entrei no projeto Ezra Pound e a Loucura, em homenagem ao genial poeta norte-americano. Nele estava também o Vítor Inácio que além de estar na universidade a estudar Engenharia, também estava a estudar realização de cinema e era aficionado ferrenho do poeta Mário de Sá Carneiro. Tocava melódica e baixo. Enquanto o Vítor era tímido e muito introspetivo, o Jorge era o contrário — combativo e expressivo. Alguns meses depois, entrou a Madalena “Gurkha” como percussionista. Fiquei muito contente por ter uma colega na música. Ela ficava à frente das percussões/bateria quando eu ia cantar ou então acompanhava-me na bateria. Ela tinha dois grandes tambores e levava-os para a casa de ensaios em Moscavide. Quanto aos meus ritmos, em minha casa ou na casa do Vítor, fazia-me acompanhar de latas de bolachas e outras idiossincrasias caseiras para poder treinar. E foi desta forma também que continuei nos Pop dell’ Arte — casas de ensaio e latas e tupperwares Ltd. (risos). Um dia, no início dos Pop…, tive de transportar uma tarola, uns pratos e um timbalão emprestados, acompanhada de João Peste, em dois autocarros para ensaiar numa vivenda de alguém conhecido em Odivelas. Chovia a cântaros. Uma miséria franciscana! (mais risos) — respondeu Ondina.

Sobre a pequena mesa da sala está um jarro com limonada e num prato bolachas. Ondina fica calada por uns minutos, enquanto bebe um gole de limonada, e Catarina regressa às perguntas, cada vez mais admirada com tanto esforço despendido em projetos que, infelizmente, nunca passaram da Península Ibérica.

— Mas tu também foste autora de vários temas musicais. Sabias escrever música?

— Não, embora tivesse tido umas noções muito básicas no 2º ciclo. Às vezes, estava num autocarro e vinha à cabeça uma determinada melodia e mentalmente eu repeti-a ad infinitum. Mal chegava a casa, pegava numa cassete e gravava-a. Vários músicos fizeram isso. Muito antes do DIY dos anos 1990, já alguns de nós militavam nesse conceito cultural porque éramos pelintras desempenados (risos). Depois escrevia a letra, por exemplo, o tema “Eastern Streets,” entre outros. Ou então, a partir de um ritmo na bateria, entrava o baixista, o guitarrista e o vocalista e um novo tema nascia. Posso citar alguns exemplos: nos Ezra Pound “Dada Cabaret Voltaire” ou o “Máscara”, nos Pop dell’Arte “Querelle”, “Sonhos Pop”, “Turim Wellissa Strada”… Mais tarde, já nos anos 1990, em The Great Lesbian Show, também compus uns quatro temas desta forma, mas já não tocava bateria. — disse Ondina.

— Mas essas bandas eram Punk? — perguntou Catarina.

— Não eram Punk no sentido canónico desse conceito musical, mas eram Punk na atitude, na criatividade, embora um ou outro tema roçasse o minimalismo Punk como os atrás citados “Dada Cabaret Voltaire” ou o “Esborrr.” Tinham ritmos muito esgalhados e minimais comme il faut na música punk. Em todos os projetos onde estive, os seus intervenientes primavam pelo ecletismo musical, experimentalismo e pelas culturas e subculturas de vanguarda. Na questão cultural com raízes no início do século XX, com o Futurismo, DADA, Surrealismo e por aí fora, estávamos todos conectados.

— À exceção da percussionista Madalena “Ghurka” tu trabalhaste com outras mulheres, ou seja, havia muitas mulheres na música um pouco mais alternativa?

— Infelizmente, não havia muitas. Nunca consegui encontrar outras moças com quem pudesse fazer música, como em Inglaterra as Raincoats, as Slits, entre outras. É muito possível que tivessem existido algumas na grande Lisboa ou no grande Porto, mas se calhar nunca passaram dos ensaios na garagem ou nos quartos dos amigos. Lembro-me das Doce, porém elas só cantavam e dançavam e era música Pop, havia a Né Ladeiras, a lei Or dos Da Vinci, a Lena D’Água, a Dina, Gabriela Schaaf, Tonicha, as Damas Rock, Tucha Casanova dos Diva, Anamar e outras cantoras. Ou cantavam repertório Pop, baladas ou folclórico. Nos Rádio Macau estava a Xana com um tom de voz inconfundível. Esta banda conseguiu um belo compromisso entre a qualidade musical e lírica dos seus temas e o lado comercial. E fizeram eles muito bem. A Midús tocava baixo nos Roquivários e cantava. O trabalho intelectual e artístico devia ser bem ressarcido e não visto como hobby ou carolice, como tem acontecido a “n” projetos. Nos 80s, as raparigas mais “alternativas” eram a Cristina “Psico” dos Dead Dream Factory, a Anabela Duarte dos Mler Ife Dada/Ocaso Épico, a Nazaré Pinela nos Capitão Fantasma e que tocava baixo, a Isa dos Morituri, Maria José “Faca na Liga” dos Guru Paraplégico, a Madalena “Ghurka” e eu. Quando digo “alternativas” é porque interpretávamos géneros musicais mais aguerridos e/ou experimentais, geralmente atribuídos aos homens músicos — respondeu Ondina.

— E como era a Lisboa dos anos 1980?

— Era uma mistura pitoresca de comércio tradicional, das Manobras de Maio, da “tomada” do Bairro Alto pelas tribos urbanas — punks, rockabillies, pessoal do heavy metal, góticos, skinheads, urbano depressivos, gente das artes e das performances, escritores  — mas tudo muito parco, tudo à medida de um país pequenino que queria pertencer à Europa, ao Mundo: “Querooo veeer, Portugal na CEE!” Este antigo bairro de Lisboa tinha muitos tascos pulguentos e foram abertos bares, mais ou menos sofisticados, como o Frágil, Ocarina, Os Três Pastorinhos, Café Concerto, etc. A pequena “movida” da grande Lisboa circulava entre Alvalade, Bairro Alto, Chiado e margem sul do Tejo. Porém, nada, mas nada comparado com a movida em Espanha, França ou com nos países Anglo-Saxónicos. Aqui tudo era feito com uma carolice dos diabos, com muito sacrifício.

— Continuo a não perceber porque é que nos anos 1980 houve tão poucas mulheres a tocar instrumentos, a formar grupos femininos, a serem independentes dos homens. Também foi assim nos anos 1990, quando foste minha professora? — perguntou Catarina, muito intrigada.

— Para te ser sincera, nem eu sei lá muito bem. Preguiça? Falta de meios? Pressões familiares? Desinteresse? Desejo de ser um ídolo Pop num mercado minúsculo e ganhar pipas de massa? Já deveria ter sido feito um livro a sério que abordasse esta temática. Só há escritos esparsos, entrevistas em documentários, mas mais uma vez tudo muito pouco. Quero salientar a importância do Rock Rendez Vous e das editoras Dansa do Som, onde trabalhei em part-time, e da Ama Romanta. Sem elas não tínhamos registos sonoros de projetos diferentes dos que passavam nas rádios. Era tudo tão pobre que poucos jovens tinham máquinas fotográficas para fotografarem ou filmarem as bandas. E também não estavam muito interessados em registarem os momentos “para mais tarde recordar.” Viviam o momento… Mesmo assim, os anos 1980 foram melhores do que os anos de 1976 a 1979, quando surgiu a contracultura do Punk em Inglaterra e nos EUA, relativamente à participação feminina portuguesa no mundo da música rock, em particular do Punk. Só a partir de 1992 é que surgiram bandas só de raparigas ou de raparigas com rapazes: Evergreen, Les Baton Rouge, Damage Fanclub, Voodoo Dolls, etc., e a editora Bee Keeper (Elsa Pires) Milk Shake (Luís Futre) plasmou alguns destes projetos nas suas compilações. Foi nessa altura que fui convidada por César “Zembla”, meu colega de Faculdade, para fazer uma cover maluca do “Je t’aime, moi non plus”. E como gostei muito das pessoas que integravam o grupo dele, que viria a ser conhecido pelo azougado nome The Great Lesbian Show, lá fiquei até junho de 2008.

— Mas tu foste ver grupos femininos ao vivo nos anos 1990?

— Sim. E fiquei amiga de algumas moças como a Carla “Suspiria Franklin” e a Ana “Corinne Dumas”. Havia novos espaços em Lisboa: Santiago Alquimista, Caixa Económica Operária, Lounge… E também tinha aparecido o telemóvel e o computador. Estas tecnologias ajudaram muito no registo fílmico dos concertos. A onda musical norte-americana com o movimento “riot girrrl” (Bikini Kill, L7, etc) estimulou algumas miúdas portuguesas, tanto a nível musical como de contestação em prol dos direitos das mulheres.

— Pelo que tu dizes, está-me cá a parecer que antes dos anos 1990 a maioria das raparigas tinham pouca intervenção na criação musical e poucas tocavam um instrumento musical. Dá a impressão que tinham um papel mais decorativo… não sei… — retorquiu Catarina.

— Catarina, lembra-te que durante cerca de cinquenta anos Portugal esteve fechado ao mundo, ao cosmopolitismo de cidades como Madrid, Londres, Roma, etc. O Estado Novo não permitia agitações e rebeldias, principalmente se viessem das mulheres. E antes da ditadura, tivemos uma série de governos republicanos quase tão reacionários, relativamente às mulheres, quanto o Estado Novo, e antes uma Monarquia que não se interessava pelo Zé Povinho e em que poucas pessoas sabiam ler e escrever, como tu já estudaste. Não é de admirar que a presença feminina na música tenha sido tão diminuta quando comparada com a presença masculina, e que tenha sido quase obliterada. Não fossem os estudos sociológicos de Paula Guerra e da sua equipa, a exposição na Reitoria do Porto/Casa Comum Mulheres que fazem barulho, alguns documentários como o Ela é uma música, e eventos como Do Punk ao Near Silence e não haveria mesmo nada em relação às mulheres portuguesas da música. E tudo isto é recente, e tudo isto é fado-punk (risos).

— Ondina, se tivesses agora 18 ou 19 anos voltarias a fazer o que fizeste?

— Voltaria, mas sozinha ou em duo, como faz Rita Braga. Vivemos outra era histórica em que o punk rock está praticamente morto tendo dado lugar ao rap e hip hop, aos fenómenos comerciais como Taylor Swift ou Dua Lipa e quando muito, à música eletrónica. O fenómeno das bandas rockeiras, mais ou menos punk, mais ou menos crossover, já é arqueologia. A minha geração — pessoal entre os 60 e os 70 anos — está a desaparecer. Muita gente do Punk português e estrangeiro e dos experimentalismos morreu, outros estão muito doentes e com graves dificuldades financeiras e outros, como eu, desistiram. Para poder continuar, teria que ser rica e de certeza não faria o mesmo que fiz no passado. Isso seria idiota. E também não haveria carolices e traições dos bares que não pagam aos músicos, porque nos supermercados e nas companhias de gás e eletricidade eles não aceitam temas musicais como pagamento.  — respondeu Ondina com um certo amargo de boca.

— Sabes o que é feito das músicas que referiste, como a Cristina “Psico”?

— Não sei nada dela, nem de outras mulheres. Apenas sei da Xana, da Anamar, da Ana da Silva e pouco mais. Também não ando sempre nas redes sociais ou em confraternizações sociais. O tempo passa a correr…

— Não te quero chatear mais, apenas quero tentar perceber o que aconteceu. Achas que o que fizeste na música teve ou tem impacto nos outros, sejam eles músicos ou público?

— Não me chateias nada. Quanto ao que perguntas, sei de alguns casos de pessoas que viram e ouviram os projetos em que estive metida e que dizem que foram grandes momentos em palco, e da boca da Ana Farinha “Corinne Dumas” aka “Candy Diaz” ouvi há muitos anos que eu a influenciei para tocar bateria. Mais não sei. Como já disse antes, para termos certezas de um facto histórico tem de haver um procedimento científico de recolha de entrevistas, materiais audiovisuais e outros, o mais fidedigno possível, para não se cair nos lugares comuns. Faço mais limonada ou queres uma ginjinha?

— Sim, um ginjinha! Boa! Vamos fazer uma saúde e votos de que apareçam mais mulheres portuguesas músicas, fora do baralho mainstream. Hip! Hip! Hurrah!!

 

(95% de factos reais e uma pitada q.b. de 5% de ficção)


Ilda Teresa CastroComo vocalista dos Rádio Macau desde 1984, tornaste-te uma figura essencial no panorama musical português. Revendo a tua experiência nos anos 80 e 90, em particular na efervescente Lisboa desse período, como descreverias a vivência de uma era em que a música emergia como força de transformação social e cultural? E, sendo mulher num meio predominantemente masculino e numa sociedade ainda marcada por valores conservadores, que conquistas, impactos e dificuldades destacas, tanto no teu percurso individual como no contexto das bandas e grupos com os quais colaboraste?

Xana — No período pós-revolucionário da década de 80, em que os termos emancipação e autodeterminação estavam na ordem do dia proporcionou-se, no âmbito da música, a possibilidade de alguns adolescentes e jovens adultos formarem grupos que eram como “empresas” que os próprios geriam. Sei que a experiência em questão não se estendeu a todas as actividades, mas vale a pena referi-la pela seguinte razão. Há alternativa à experiência da competição. Na nossa ingenuidade fomos sábios. Se competíssemos com os elementos do grupo sabíamos que o projecto não sobreviveria, e se a competição se estendesse a outros grupos, a actividade desmoronaria. Uma actividade não se sustenta apenas com dois ou três dos que não foram eliminados, e se a actividade desmoronasse também os vencedores colapsavam.

Na minha perspectiva, a quase inexistência de competição foi um dos motivos para o relativo sucesso da actividade de músico na década de 80. A competição à maneira ultraliberal só deu entrada na “indústria” em meados da década de 90, mas dela não quero falar, prefiro sublinhar que há alternativas à competição, porque a vivenciei. Houve estímulo e muito juízo crítico, e crítica não se confunde com competição, é um modo diferente de avaliar projectos e progredir, aprende-se a ouvir. Na competição não se escuta ninguém, desconfia-se.

Não trabalhei para um patronato, é verdade, o projecto era nosso, as editoras, as agências de gestão, entre outras entidades, considerava-as unidades colaboradoras. Os projectos eram discutidos, livremente, em debates bastante acesos, mas nada me foi imposto, ninguém me mandou calar, não tenho denúncias a fazer, outras pessoas terão. Todas as causas pelas quais me bati expressei-as, todas as injustiças que presenciei reportei-as, os jornais ou outros arquivos da época comprovam-no. De resto, o país estava uma lástima, consequência de 40 anos de fascismo, que submeteu homens e mulheres a um atraso incomensurável, grande parte da população era analfabeta. Estava enraizado um comportamento beato, autoritário e intolerante num número significativo de adultos da década de 80. E hoje ainda há traços desse mesmo comportamento, o qual muitas de nós quisemos combater. Mas o que esperar de humanos que foram submetidos à experiência de um regime fascista? Vítimas ou produto de um programa de horror, pressenti que muitos deles dificilmente mudariam e, por isso, avante, faltava tempo para gastar no passado, havia uma oportunidade para transformar tudo na liberdade recentemente conquistada.

A atitude de indiferença relativamente ao que se desprezava era muito típica dos anos 80, e tinha a sua eficácia. Significa que se vivia numa bolha? Não. Apenas se respondia com a atitude contrária à que se desprezava, na maneira de vestir, na assertividade, nas provocações, nos projectos, na realização de eventos. A resposta estava na alternativa que se apresentava. Ouvia muito frequentemente “não digas, faz tu mesma”, e no que se fizesse estaria, em princípio, a denúncia e a alternativa. Continuam lá. Este tipo de assertividade na forma de um fazer contínuo possibilitou o desenvolvimento de inúmeras propostas singulares e contrárias às desenvolvidas no passado, nem todas primavam pela qualidade, mas na maioria delas acenava-se ao não conformismo, à autodeterminação. Não significa que o campo estivesse livre de obstáculos, de tensões entre pólos opostos, razão pela qual também se apelava a avançar para a linha de frente, não na forma de seguidismo, não me parece que alguém estivesse interessado em seguir um líder, um iluminado, uma teoria, cada um avançava como queria e sabia. Era até divertido olhar para a diversidade dos “combatentes”, não estavam uniformizados.

Alguns dos meus colegas mencionam a questão do ‘empreendedorismo na actividade musical’, muito devido ao facto de as pessoas dos projectos se constituírem detentoras dos mesmos e de não dependerem de subsídios. Concordo, mas com a salvaguarda de que este ‘empreendedorismo’ não configurava o actual, e como tal esta palavra esvaziou o significado que lhe fora antes atribuído, pelo menos nos projectos que conheci e naqueles em que me envolvi. Há alternativa, insisto. Acresce existir um tipo de crítica muito aguçada na época, penso que gostávamos desse espírito crítico, originava debates interessantes sobre os processos de composição, mas também sobre o processo formativo de uma sociedade que estava e ainda está, na minha perspectiva, a constituir-se.