Do Punk ao Near Silence II | 9º ciclo
Do Punk ao Near Silence II
9.º ciclo de visionamentos comentados
Do Punk ao Near Silence II é um ciclo de visionamentos comentados, programado, produzido e apresentado por Ilda Teresa Castro, onde se mapeia o encontro entre o cinema, a música e a cidade de Lisboa, que terá três sessões a decorrer no Teatro do Bairro, em Lisboa.
Cada sessão deste ciclo começa com uma longa-metragem e segue com uma conversa com músicas e músicos, realizadores e autores, radialistas e especialistas da tipologia musical em foco.
No pré-25 de Abril, o jazz instala-se no Hot Club de Portugal e marca a cena musical da cidade, a partir de 1948, na Praça da Alegria. O rock irrompe em Lisboa na segunda metade dos anos 60 e as suas derivações, do hard rock ao rock progressivo, nos anos 70. Nos anos 90, a pop electrónica surge na capital portuguesa.
A emergência destas várias tipologias promoveu movimentos de arte e cultura com impacto estético, sociocultural e político, que estiveram patentes nos comportamentos, atitudes e vivências. Movidas que envolveram espaços e bairros da cidade, ligados pela música como impulso comum.
Nesta parte II, o enfoque será no Hot Club da Praça da Alegria, no Cinearte de Santos e em locais do Cais do Sodré – após terem sido focados Alvalade, Rego, Campo de Ourique e Bairro Alto, em 2023.
O programa reúne um conjunto de documentários que reconstituem momentos históricos e memórias da Música em Lisboa, numa aproximação às músicas e músicos lisboetas que a fizeram e fazem, e às estórias de quem a viveu e vive por dentro, já que, embora com outros nomes e em permanente transformação, a criação persiste.
Teatro do Bairro
Rua Luz Soriano 63, 1200-246 Lisboa
10, 11 e 12 de outubro, 21:00
(A classificar pela CCE)
Entrada Livre (sujeita à lotação da sala)
Bilhetes disponíveis na bilheteira do Teatro no próprio dia, a partir das 15:00
Reservas 213 473 358 (segunda a sexta das 15:00 às 18:00)
Teatro do Bairro
Rua Luz Soriano, 63, 1200-246 Lisboa
Entrada livre sujeita à lotação da sala
10 outubro
21:00 - LUÍZ VILLAS-BOAS — A ÚLTIMA VIAGEM
Laurent Filipe, 2023, 59´
Produção LFP Lda.
Intervalo 10´
22:00 - Conversa comentada por Gonçalo Falcão
com Carlos Barreto, Laurent Filipe e Luís Hilário
11 outubro
21:00 - PHIL MENDRIX
Paulo Abreu, 2015, 70´
Produção Daltonicbrothers / Bando à Parte
Intervalo 10´
22:00 - Conversa comentada por Isilda Sanches
com António Duarte, Paulo Abreu e Vítor Rua
12 outubro
21:00 - MICRO AUDIO WAVES — musicbox club docs #2
Paulo Prazeres, 2010, 59´
Produção Co-Produção CTL / Droid id
Intervalo 10´
22:00 - Conversa comentada por Mário Lopes
com António Forte, Flak, Gonçalo Riscado e Paulo Prazeres
LUÍZ VILLAS-BOAS — A ÚLTIMA VIAGEM
Laurent Filipe, 2023, 59´
Produção LFP Lda.
Incansável na promoção e divulgação da música Jazz, fundador do Hot Clube de Portugal, de uma influência decisiva na evolução da música popular portuguesa, Villas-Boas foi um “porta-estandarte” cuja audácia e espírito de risco serviu de exemplo aos contestatários do antigo regime.
2024 marca o centenário do nascimento de Luíz Villas Boas, fundador do Hot Clube de Portugal que em 2023 celebrou setenta e cinco anos de existência, e do Primeiro Festival Internacional de Jazz de Cascais, que em 2021 completou 50 anos, um evento marcante da história da cultura musical em Portugal, e prenúncio de uma nova era na sociedade portuguesa do pré 25 de Abril.
PHIL MENDRIX
Paulo Abreu, 2015, 70´
Produção Daltonicbrothers / Bando à Parte
A vida atribulada de Filipe Mendes, um dos melhores guitarristas portugueses de sempre. Desde 1965, fez parte de bandas como os Chinchilas, Roxigénio, Psico, Heavy Band, Irmãos Catita e Ena Pá 2000, Os Charruas, Phil Mendrix Band entre outras. Construído a partir de materiais filmados entre 1994 e 2013, o filme é também o retrato de uma época em que, em Portugal, se descobriu e explorou o rock.
DocLisboa 2015 - Prémio do Público
Festival Internacional de Música no Cinema - Prémio do Juri Competição Nacional
MICRO AUDIO WAVES — musicbox club docs #2
Paulo Prazeres, 2010, 59´
Produção Co-Produção CTL / Droid id
Banda reconhecida pela multidisciplinaridade de projectos, interrompeu a turnê de auditórios para oferecer ao Club Docs um concerto Rock de grande impacto sonoro. Europa, a discoteca icónica do Cais do Sodré, recebeu a equipe e os músicos para uma conversa informal, muito focada em cortar com o mito do aparato tecnológico a que são sempre associados, e que assumem com naturalidade nos processos de trabalho nas canções dadaístas que produzem desde 2002.
Micro Audio Waves: Cláudia Efe, C. Morg, Flak, Francisco Rebelo e Lito Pedreira.
Os Micro Audio Waves nasceram em 2002, ano em que editaram o seu primeiro álbum homónimo. Em 2004 editam “No Wave” e vencem os Qwartz Electronic Music Awards nas categorias de melhor álbum e melhor vídeo. Em 2007 lançam “Odd Size Baggage” e em 2009 colaboram com o bailarino e coreógrafo Rui Horta no espectáculo “Zoetrope”, que é posteriormente editado em CD e DVD.
Programação e Produção: Ilda Teresa Castro
Coordenação: Fernando Carrilho
Design: Joana Pinheiro
Montagem Fotográfica: Fátima Rocha
Som de Régie: Pedro Lourenço, Álvaro Silva
Comunicação: Pedro Cordeiro e Susana Santareno
Secretariado: Sofia Macedo, Manuela Martins
Apoio de serviços da CML: Divisão de Gestão de Frota; Secretaria Geral - Imprensa Municipal
Organização: Câmara Municipal de Lisboa
Vereação da Cultura: Carlos Moedas
Direção Municipal de Cultura: Laurentina Pereira
Departamento de Património Cultural: Jorge Ramos de Carvalho
Divisão de Arquivo Municipal: Helena Neves
Arquivo Municipal de Lisboa – Videoteca: Fernando Carrilho
Coapresentação: Videoteca do Arquivo Municipal de Lisboa e Teatro do Bairro
Contributos para um mapeamento
A Importância da Música em Lisboa: Uma História de Percursos e Revoluções Sonoras
Será que ainda precisamos de relembrar o impacto da Música em Lisboa ou é algo sempre presente?
Desde 1948, quando o Jazz encontrou casa no icónico Hot Club de Portugal, na Praça da Alegria, a cidade tornou-se num palco privilegiado para os sons alternativos. Este foi o ponto de partida para uma longa história de revoluções sonoras. Nos anos 60, o Rock emergiu com força, sendo a capital o epicentro deste fenómeno, enquanto nos anos 70, o Hard Rock e o Rock Progressivo ganhavam destaque.
No entanto, o acesso à música internacional era limitado em Portugal antes do 25 de Abril. As ondas de rádio, com programas de vanguarda, desempenharam um papel crucial na democratização da música, ao permitir que os ouvintes gravassem as tão desejadas cassetes de artistas que não conseguiam encontrar nas prateleiras das lojas nacionais.
Com a Revolução de 1974, Lisboa recebeu uma nova explosão de géneros. O Punk, o Pós-Punk, a New Wave e o Pop/Rock dos anos 80, redefiniram o panorama musical. Na década de 90, foi a vez da Pop Eletrónica dominar a cidade, abrindo caminho para novas tendências que marcaram gerações.
Lisboa, o Coração das Movidas: Das Margens ao Centro
Lisboa foi o epicentro nacional destas várias movidas, mas não esteve sozinha. Outros locais como Almada, Porto, Coimbra e Viseu não ficaram atrás. Cada cidade, bairro e espaço cultural contribuiu para uma verdadeira revolução que atravessou fronteiras e gerou impactos estéticos, socioculturais e políticos. Estas movimentações musicais alteraram comportamentos, atitudes e a forma como as gerações seguintes viveram a cidade.
Em 2023, o ciclo Do Punk ao Near Silence atravessou bairros lisboetas como Alvalade, Rego, Campo de Ourique e Bairro Alto. Para 2024, o foco desloca-se para o histórico Hot Club na Praça da Alegria, o Cinearte de Santos e locais icónicos do Cais do Sodré. A jornada culminará em 2025, com a celebração da Música Improvisada e Experimental dos anos 70, da Música Erudita Contemporânea e do Near Silence, um género que se afirmou em Lisboa após o workshop de Richard Teitelbaum no CCB, nos anos 90, e que se mantém vivo no século XXI.
Contributos para um Mapeamento Sonoro: Testemunhos e Memórias
Quando o cinema encontra a música: uma jornada comentada pelos protagonistas
Em Contributos para um Mapeamento, reunimos vozes diversas, desde músicas a realizadores, radialistas a autores, que partilham as suas memórias e vivências da cena musical lisboeta. Através deste ciclo de visionamentos comentados, o cinema torna-se o meio para mapear a presença e a evolução das diversas tipologias musicais em Lisboa, oferecendo uma perspetiva única sobre o passado, presente e futuro da música na cidade.
Contextualização
Até à descoberta do uso da eletricidade, existia uma relação profunda entre a música e o espaço arquitetónico onde ela ocorria. As cidades são os objetos mais complexos que os seres humanos conceberam. São a arquitetura e o espaço entre a arquitetura, desenhadas de modo a prover às necessidades mais básicas, alimentares e físicas, mas também as espirituais e a articular a vida coletiva.
No filme “Casablanca”, de 1942, Rick (Humphrey Bogart) pergunta ao capitão Renault (Claude Rains) o que é que há em Lisboa, e este responde-lhe: “aviões para a América”; mas Lisboa era mais do que meios de transporte em trânsito. Na primeira parte – A cidade de Lisboa e o jazz – falaremos sobre a relação da cidade com a música que nela foi sendo tocada, particularizando no jazz. Na segunda parte - O jazz e a cidade de Lisboa – usa-se a perspetiva da música para falar da cidade.
A cidade de Lisboa e o jazz
Até à descoberta do uso da eletricidade, existia uma relação profunda entre a música e o espaço arquitetónico onde ela ocorria: o cantochão soa bem no espaço reverberativo pétreo das catedrais góticas e um quarteto de cordas no espaço acústico dos salões de madeira e estuque. A música estava profundamente ligada à arquitetura onde era tocada.
As cidades são os objeos mais complexos que os seres humanos conceberam. São a arquitetura e o espaço entre a arquitetura, desenhadas de modo a prover às necessidades mais básicas, alimentares e físicas, mas também as espirituais e a articular a vida coletiva. São pontos de encontro. As portuárias, como Lisboa, são-no por natureza. Os portos abrem as terras ao que vem de fora, ao diferente, ao outro, que passa a ser aguardado e não receado. Os portos moldam o temperamento das cidades onde ficam. As pessoas ficam mais receptivas ao que vem de fora. São locais de trocas, desde as comerciais às inconveniências. A mistura de gentes, vidas e culturas favorece o aparecimento de formas musicais inovadoras. As cidades portuárias deram ao mundo muitas das músicas mais extraordinárias que hoje ouvimos: New Orleans criou o jazz, Havana a Salsa, Buenos Aires o Tango e Lisboa, o Fado (Liverpool é o mais importante porto britânico para o comércio transatlântico, e foi nos seus bares que nasceram os Beatles, que se estrearam internacionalmente em Hamburgo, o maior porto alemão).
Lisboa é uma cidade musical, não só de fados com histórias de amores de marinheiros fugidios. Uma cidade onde nasceram e nascem bandas, do rock ao hip-hop (as cidades grandes têm “periferias” que são um terreno fértil para as músicas de revolta e protesto) e com jazz, que, tendo sido criado na América, aqui foi acolhido desde muito cedo. Em Lisboa a ideia de “música moderna” é atraente e atrai.
O jazz é um contexto musical onde impera a liberdade, o improviso e onde se resolve uma oposição estruturante das sociedades, entre poder ser profundamente individual e ao mesmo tempo verdadeiramente coletivo.
No século XIX o porto continuava a ser o grande cais, para mercadorias e para a cultura: “Aqui importa-se tudo. Leis, ideias, filosofias, teorias, assuntos, estéticas, ciências, estilo, indústrias, modas, maneiras, pilhérias, tudo vem em caixotes pelo paquete. A civilização custa-nos caríssimo, com os direitos de Alfândega: e é em segunda mão, não foi feita para nós, fica-nos curta nas mangas…”; no século XX surgem outros meios.
No filme “Casablanca”, de 1942, Rick (Humphrey Bogart) pergunta ao capitão Renault (Claude Rains) o que é que há em Lisboa, e este responde-lhe: “aviões para a América”; mas Lisboa era mais do que meios de transporte em trânsito. Nos anos 50 do século XX, no rescaldo da 2.ª guerra mundial, as músicas do novo continente chegam-nos por barco, avião e pela rádio. Vem o rock e o jazz.
Mesmo com toda a maleabilidade histórica, é muito difícil afirmar que há jazz na Capital antes do final dos anos 40, apesar de ter havido um ou outro caso pontual de aparecimento de músicas relacionadas com o jazz. O primeiro texto conhecido saiu em 1924 na “Ilustração Portuguesa, escrito por Ferreira de Castro, num bosquejo histórico sobre a origem e disseminação desta música na América e da sua viagem até à Europa. Sidney Bechet terá estado em Lisboa em 1928 tocando integrado na orquestra de Louis Douglas e no espetáculo itinerante “Revue Nègre” no Teatro da Trindade. O centro das atenções não era tanto a música, que servia como pano de fundo para o elogio dos corpos e da dança de africanos, numa “apoteose às ideias modernas”. O destaque jornalístico foi para as bailarinas que se vestiam “com o seu próprio corpo” – “almas brancas, claras, em corpo de tição!”
Mariana Calado, que estudou a presença do jazz no Diário de Lisboa, nota que há várias referências a eventos e concertos, mas nenhuma crítica aos acontecimentos o que nos sugere que a palavra “jazz” era usada como qualificativo comercial mas não como definidor do que realmente aconteceu, tal como a autora sugere. O destaque que a publicidade dá à presença das jazz-band evidencia o papel que estas tinham na atração de clientela para os estabelecimentos (...) as jazz-band são apresentadas como sinónimo da “alegria” e da “animação” que também se anunciavam””.
A partir das referências a jazz nas notícias e anúncios do Diário de Lisboa, a autora constrói uma geografia da Lisboa do “jazz-band” (orquestras que tocavam música de dança, como por exemplo o Charlston, o Fox-Trot ou o Shimmy, formas musicais dançáveis derivantes do jazz) que vai do Rossio a meio da Avenida da Liberdade (Avenida Parque, no Avenida Palace Club e no Salão Alhambra, do Parque Mayer, no Ritz Club (mais tarde, Palace Dancing), no Tivoli’s Dancing, no Bristol Club, no Restaurante Carlton, no Café Tavares, no Clube dos Patos, no Salão Foz, no Café Tavares, no Teatro do Ginásio, no Avenida Parque.)
Reforço que há alguma propensão em confundir o uso da palavra “jazz” ou “jazz-band”com a música jazz. “«Jazz-band» é o nome genérico que um certo tipo de música popular norte-americana, com raízes negras, recebe.(...) A origem americana do jazz-band é unanimemente reconhecida, mas considera-se que esta música assume novos contornos na Europa“, escreveu Cecília Vaz. Não temos maneira de ouvir esta música “jazz-band” que tocava em Lisboa mas devemos ter presente que, nesta altura, não havia uma possibilidade de conhecer diretamente o jazz americano, e por isso a relação entre a música que em Lisboa se chamava jazz e a que se tocava na América do Norte, será provavelmente muito ténue. Se ainda hoje há festivais que usam o substantivo sem que a música que programa lhe corresponda (ex. EDP Cool Jazz; ou, para usar outro exemplo, um dos melhores discos dos Queen chama-se “Jazz” e não tem qualquer relação com o jazz), imagine-se o que seria na altura, em que o acesso à informação era extremamente difícil.
Não se pode confundir o uso da palavra “jazz” com a existência de jazz (por exemplo; um dos melhores discos dos Queen chama-se “Jazz” e não tem jazz). É no final dos anos 40 do século passado que podemos estabelecer com segurança a presença do jazz em Lisboa: Jorge Costa Pinto conta como foi marcado pela primeira vez que ouviu jazz, no salão de chá do Café Chave D’Ouro, que ficava no Rossio, em 1948. Foi uma sessão organizada por Luiz Villas-Boas com o grupo de Tavares Belo. Esta prática de organizar sessões de jazz e jam sessions começou 3 anos antes, em 1945, no Instituto Superior Técnico. Luiz Villas-Boas trabalhou para uma companhia aérea. Os “aviões para a América” voaram a favor do jazz.
À medida que o porto de Lisboa deixava de ser a única forma de entrada das “ideias, filosofias, teorias, assuntos, estéticas”, a morada do jazz em Lisboa foi subindo pela cidade, estendendo-se pela Avenida da Liberdade acima, com a visão de Rosa Araújo (copiando as ideias francesas).
No início do século XX Alfama, Mouraria e Bairro Alto deixaram de liderar os locais onde a vida acontecia (não só a noturna). O Rossio, a Avenida da Liberdade (e mais tarde o novo bairro de Alvalade, onde fica o Instituto Superior Técnico) ganham relevância. O Hot Clube surge na praça da Alegria e a Avenida da Liberdade (1948) assumiu um papel estruturante para a música da liberdade e do improviso. Afastou-se da água e passou a apreciar mais a cidade.
O jazz é uma música que valoriza a liberdade e assim sendo não é de estranhar que num país “amordaçado” a “música livre” tenha sido vista e ouvida como quem pergunta a um beduíno no deserto se quer um grande copo de água límpido e fresco.
A Emissora Nacional, sediada em Lisboa, transmitiu o primeiro programa de jazz em 1945 e o Rádio Clube Português começou em 1946. No mesmo ano o jornal “Cartaz” publica o primeiro artigo de Villas-Boas sobre jazz, e a partir de então começará a produzir regularmente crítica e divulgação escrita.
O Hot Clube de Portugal (HCP) é o mais antigo clube de jazz da Europa. Fundado em 1945 para permitir o encontro de um grupo de pessoas que ouviam quase clandestinamente a “grande música negra” e que se reuniam para partilhar este gosto. Nasceu com “ambição e confiança de que Portugal seria também uma geografia com jazz e de que, também aqui, o jazz seria mais tarde ou mais cedo, livre.” Escreveu António Curvelo no “Hot News 70”.
Em 1958, uma dissidência no Hot leva à formação do CUJ – o Clube Universitário de Jazz, também na praça da Alegria, mas um pouco mais acima (n.º 76). Passamos a ter dois clubes a que se viria a juntar o Luisiana, de Luiz Villas-Boas, em Cascais, mais tarde.
Só nos anos de 1970 começa a profissionalização dos músicos de jazz que se formavam maioritariamente fora de Portugal. Rão Kyao tinha 29 anos quando no dia 17 de maio de 1976 entrou nos estúdios da Valentim de Carvalho em Algés para a primeira sessão de gravações. Foi acompanhado pela elite dos músicos do seu tempo e pelas pautas que escreveu. No piano estava Tony Pinho Da Silva, (mais tarde António Pinho Vargas), no contrabaixo e baixo elétrico José "Boots" Eduardo (mais tarde Zé Eduardo), na bateria Joãozinho "Oiã" (que desapareceu da vida musical depois de dois discos neste período) e na voz Very Nice (que mais tarde ficará conhecido como Fernando Girão). “Malpertuis” é o primeiro disco de jazz português e marca um começo em grande, com uma música bem compreendida e execução ao mais alto nível.
Lisboa foi, durante muito tempo, a cidade do jazz em Portugal, tendo depois surgido Cascais (e mais tarde o Estoril) como polos de expansão. Hoje quase todas têm o seu “festival de jazz”, mesmo quando é só um fim-de-semana com dois concertos (vale o esforço).
Se há povo que sabe improvisar somos nós. Os lisboetas, como portugueses que vivem numa grande cidade, sabem perfeitamente o valor de estarem disponíveis para o inesperado, criando aliás vocábulos para o improviso, como o desenrascar, desentalar, criar uma giga-joga, etc. O maior festival de jazz português fica em Lisboa, promovido pela Fundação Calouste Gulbenkian (infelizmente a Câmara Municipal nunca se conseguiu afirmar neste domínio, tendo promovido alguns eventos relevantes mas não tendo um grande festival de jazz da cidade, como acontece em quase todas as capitais europeias). Lisboa acolhe hoje vários músicos de jazz internacionais que a escolheram para viver e tem uma cena local vibrante com muitos clubes que programam regular ou pontualmente concertos de jazz ou de músicas fronteiriças (mesmo com o Hot Clube fechado para revisão estrutural do edifício temos o Cosmos, a Sala Lisa, o Penhasco, o Távola, B.O.T.A. e a ZDB, a Zaratan).
O jazz em Lisboa é muito mais interessante, novo e vivo do que o de outras capitais europeias mais poderosas, desde logo, Madrid. O jazz deixou de ser uma música estrangeira para passar a fazer parte do ser alfacinha.
Lisboa marcha a dias certos, com “bairros” que já não existem e que ensaiam fora da cidade, onde as pessoas que deixaram de poder pagar rendas foram morar. Mas no dia a dia continuamos a improvisar, a swingar e a termos jazz nas veias, a música da liberdade.
O jazz e a cidade de Lisboa
O “Jazz Visto Por Artistas Modernos” é o nome do “salão” que resultou do primeiro concurso de artes plásticas organizado pelo Hot Clube de Portugal, organizado por Sena da Silva. António Lopes Alves, René Bertholo, Manuel Cargaleiro, Guilherme Casquilho, Lourdes Castro, Valadas Coriel, José Escada, João Hogan, Albertine Mântus, Nuno San Payo, Sena da Silva, José Luís Tinoco, Vespeira e Henrique Leiria criaram obras originais a partir da interseção das duas formas criativas – música e artes visuais. Procurava-se perceber como é que o jazz podia ser uma fonte de inspiração para a criação nas artes plásticas.
Lisboa tem uma qualidade única que a torna uma fonte constante de inspiração para músicos de jazz. A combinação de sua arquitetura histórica, luz especial, bairros pitorescos e a melancolia parece ser musicalmente inspiradora. Lisboa tem uma vibração humana, uma luz quente e - na forma como as suas colinas proporcionam olhares magníficas - fomenta um olhar introspetivo; características que ressoam profundamente com o espírito do jazz.
A saudade, uma palavra que convencionámos definir uma essência portuguesa e que se manifesta de forma única no fado de Lisboa, encontra no jazz uma música particularmente capaz para expressar este tipo de emoções profundas e complexas através da improvisação e da harmonia. O fado, com sua melancolia e expressividade, compartilha afinidade com o blues, um dos pilares do jazz. A cidade reflete-se no jazz, inspirando inúmeros músicos. Muitos músicos de jazz, portugueses e estrangeiros, encontraram em Lisboa uma musa.
Há quem defenda que há um “jazz português”, como Rui Eduardo Paes: “existe um jazz português, não apenas porque é tocado por portugueses, mas porque deriva de uma identidade portuguesa, ou de uma maneira portuguesa de o entender e tocar”. Não estamos tão seguros. Mas olhando para a quantidade de músicas sobre Lisboa e para o modo como este tipo de música se desenvolveu entre nós, estamos seguros que de algum modo há um jazz lisboeta. Que gosta de cá morar. O jazz em Lisboa é mais do que uma presença musical; é uma parte integral da identidade cultural da cidade, uma expressão de sua alma e uma prova de sua capacidade de abraçar o novo enquanto honra o antigo.
Apresentamos uma primeira recolha de temas escritos para Lisboa. Um olhar amoroso:
4 Corners, “Alive In Lisbon” – “Alive In Lisbon”, Clean Feed 2008
Afonso Pais, “Lisboa Antiga” – “Terra Concreta”, 2010
Akiko Pavolka / Nate Radley / Óscar Graça / Demian Cabaud / Jochen Rueckert, “Alfama” – Guimarães Jazz / TOAP Colectivo Vol. VI, Tone Of A Pitch, 2012
Albert Cirera “Lisbon Oneiric's Book” – Lisboa's Work, Multikulti Project 2017
Billy Vaughn And His Orchestra, “Lisboa Antigua” – “Billy Vaughn And His Orchestra”, Dot Records
Carlos Barretto “Lisboa Que Amanhece” – “Silêncios”, Foco Musical, 2000
Carlos Do Carmo / Bernardo Sassetti “Lisboa Que Amanhece” – “Carlos Do Carmo Bernardo Sassetti”, Universal Music, 2015
Carlos Martins, “Sinos de Lisboa”– “Carlos Martins”, Sons Da Lusofonia, 2016
Chris Parker, “Late In Lisbon” – “Late In Lisbon”, OA2 Records, 2002
Chris Parker, “Under The Bridge” – “Late In Lisbon”, OA2 Records, 2002
Cyril Bondi / D'incise / Ernesto Rodrigues / Guilherme Rodrigues / Lisa Ullén, “Alcântara” – “Lisboa”, Creative Sources, 2012
Cyril Bondi / D'incise / Ernesto Rodrigues / Guilherme Rodrigues / Lisa Ullén, “Alfama” – “Lisboa”, Creative Sources, 2012
Cyril Bondi / D'incise / Ernesto Rodrigues / Guilherme Rodrigues / Lisa Ullén, “Bairro Alto” – “Lisboa”, Creative Sources, 2012
Cyril Bondi / D'incise / Ernesto Rodrigues / Guilherme Rodrigues / Lisa Ullén, “Graça” – “Lisboa”, Creative Sources, 2012
Cyril Bondi / D'incise / Ernesto Rodrigues / Guilherme Rodrigues / Lisa Ullén, “Lapa” – “Lisboa”, Creative Sources, 2012
Dizzy Gillespie “Lisbon” - “The Winter In Lisbon”, Milan-America, 1991
Fred Lonberg-Holm / Simon Camatta / Chris Pitsiokos / Florian Walter “Lisboa” – Lisboa / Moiré Studies, Umland 2019
George Haslam / Mário Rua, “Alfama” – “Maresia”, Slam Productions, 2012
João Falcato, “Chôro A Lisboa” – Lua Nova, 2006
João Paulo / Paulo Curado / Bruno Pedroso “Daqui Vê-se A Ilha da Graça” – As Sete Ilhas De Lisboa, Clean Feed, 2003
João Paulo / Paulo Curado / Bruno Pedroso “Este Castelo De Areia” – As Sete Ilhas De Lisboa, Clean Feed, 2003
Julian Argüelles, “Alfama” – “Tonadas”, Edition Records, 2018
Júlio Resende, “All the things - Alfama – Are” – Fado Jazz Ensemble, Sony Music, 2021
Laurent Filipe Featuring Aldo Romano, “Lisboa” – Laura, Numérica, 1993
Manuel Mota & Noël Akchoté “Casa de São Mamede” – “Lisboa 2011”, Noël Akchoté Downloads, 2012
MMM Quartet “Alfama” - Oakland/Lisboa, RogueArt, 2015
MMM Quartet “Bairro Alto” - Oakland/Lisboa, RogueArt, 2015
MMM Quartet “Belém” - Oakland/Lisboa, RogueArt, 2015
Noël Akchoté, “O Fado Mora Em Lisboa” – “Melodias De Sempre Vol. 01 (Fados)”, Noël Akchoté Downloads, 2016
Orquestra De Jazz Do Hot, “Sam's Boogie (Lisboa Blues)” – “Orquestra De Jazz Do Hot”, Phillips, 1994
Paula Oliveira & Bernardo Moreira “Lisboa Que Amanhece” – “Lisboa Que Adormece”, Universal Music, 2005
Pedro Branco, “Lisboa” – “A Narrativa Épica do Quotidiano”, 2022
Pedro Iturralde, Feeling Sax Ensemble, “Memórias (Tríptico), Lisboa” – “Memorias”, Sonograf, 1998
Per Gärdin / Pedro Lopes / Rodrigo Pinheiro “History Of The Lisbon Chaplaincy” – “History Of The Lisbon Chaplaincy”, Creative Sources, 2017
Quinteto Jazz De Lisboa “Bairro Alto” – “Viragens”, Ovação, 2019
Rafael Toral / Hugo Antunes / João Pais Filipe / Ricardo Webbens “Lisboa I” – “Space Quartet”, Clean Feed, 2018
Rafael Toral / Hugo Antunes / João Pais Filipe / Ricardo Webbens “Lisboa II” – “Space Quartet”, Clean Feed, 2018
Rafael Toral, “Space Collectives 5 – Chiado” – “Space Collectives II”, Noise Precision Library, 2017
Ron Horton “Lua Cheia Sobre Lisboa (Full Moon Over Lisbon)”– Everything In A Dream, Fresh Sound New Talent, 2005
Steve Ramsdell, “Barrio Alta” – “Looking For...”, Kopaesthetics, 2008
Steve Ramsdell, “Chiado” – “Looking For...”, Kopaesthetics, 2008
Steve Ramsdell, “Lisboa Siesta” – “Looking For...”, Kopaesthetics, 2008
Tatsuya Nakatani / John Edwards / Rafael Toral, “Live In Lisbon” – “Live In Lisbon”, Noise Precision Library, 2019
Vienna Art Orchestra, “Lisboa In Reverie” – “Artistry In Rhythm: A European Suite”, TCB Records, 2000
Wade Matthews, Abdul Moimême, “Apiários / Tapada D'Ajuda” – “Lisbon - 10 Sound Portraits”, Creative Sources, 2017
Wade Matthews, Abdul Moimême, “Arsenal” – “Lisbon - 10 Sound Portraits”, Creative Sources, 2017
Wade Matthews, Abdul Moimême, “Brincadeira / Calçada De São Vicente” – “Lisbon - 10 Sound Portraits”, Creative Sources, 2017
Wade Matthews, Abdul Moimême, “Engarrafamento / Rua Dos Fanqueiros” – “Lisbon - 10 Sound Portraits”, Creative Sources, 2017
Wade Matthews, Abdul Moimême, “"À Procura Do Macaco Adriano" / Santa Apolónia” – “Lisbon - 10 Sound Portraits”, Creative Sources, 2017
Wade Matthews, Abdul Moimême, “Largo Do Chafariz De Dentro" / Alfama” – “Lisbon - 10 Sound Portraits”, Creative Sources, 2017
Wade Matthews, Abdul Moimême, “Mãe D'Água” – “Lisbon - 10 Sound Portraits”, Creative Sources, 2017
Wade Matthews, Abdul Moimême, “Pássaros / Alfama” – “Lisbon - 10 Sound Portraits”, Creative Sources, 2017
Wade Matthews, Abdul Moimême, “Ponte 25 De Abril / Alcântara” – “Lisbon - 10 Sound Portraits”, Creative Sources, 2017
Wade Matthews, Abdul Moimême, “Tejo / Cais Do Sodré” – “Lisbon - 10 Sound Portraits”, Creative Sources, 2017
Woody Mann, “Another Lisboa” – “Road Trip”, Acoustic Music Records, 2005
Cidades são música
Não há mundo sem música. E se houvesse, seria bom viver nele? A pergunta é retórica, a história mostra que a expressão musical é ancestral. Há pinturas rupestres de flautas com mais de 60 mil anos e os primeiros artefactos arqueológicos, ou instrumentos musicais de que há registo, datam do Paleolítico Superior, mas é possível que a música seja ainda mais antiga.
Primeiro de forma intuitiva, ou improvisada, como manifestação emocional ou com aspirações mágicas, mais tarde obedecendo a uma ou várias formas de notação, a música é indissociável da história da humanidade. Acompanhou e refletiu a evolução social, política, económica e tecnológica, aproximando pessoas e culturas e agindo simultaneamente como elemento de coesão e mudança.
Novas músicas provocam, quase sempre, novos comportamentos, que levam a novos costumes e geram ondas de mudança que podem inspirar outras novas músicas, mantendo um movimento perpétuo de interação com a sociedade. Continua a ser assim no séc. XXI, onde a música é omnipresente, quase sempre imaterial e à distância de um dedo com ligação à internet, criando macro e micro tendências que se repercutem na nossa vida individual e colectiva, mesmo que não tenhamos consciência disso.
Não é preciso aval administrativo para a música existir, basta haver pessoas, e quantas mais, maior tendem a ser a procura e a oferta, uma espécie de mercado espontâneo e diverso que nasce, e cresce, com a vida em comunidade. Historicamente, a relação da cidade com a música implica espaços, institucionais, ou não, onde ela possa ser estudada/praticada e apreciada. De um modo geral, os locais institucionais obedecem a normas mais ou menos conservadoras, ou de acordo com as convenções, mas os outros podem operar (se quiserem) fora da rede, como elementos agitadores. Ambos são determinantes para a identidade de uma cidade, mas os que funcionam à margem do circuito oficial costumam ter valor mais disruptivo. Primeiro albergam públicos marginais em nichos, depois criam tendências, eventualmente tornam-se dominantes. Por isso falamos em blues de Chicago, jazz de New Orleans, techno de Detroit, batida de Lisboa, da cena de Manchester, do som de Bristol, da No Wave de Nova Iorque, do grunge de Seattle, do hip hop de L.A., que é diferente do hip hop de Austin, como o hip hop da Linha de Sintra é diferente do hip hop do Porto. Ecossistemas urbanos específicos, favorecem o aparecimento de movimentos musicais especiais, mesmo se derivados de tendências mais globais.
Também é possível contar a história de Lisboa pela música que nela se ouve, desde logo pelo lado do fado, género “oficial” da cidade que nos anos recentes até tem conhecido grande fôlego e novas derivações, e que é fruto de séculos de miscigenação. Mas, concentrando a atenção apenas na segunda metade do séc. XX, e sobretudo no pós 25 de Abril, há uma narrativa que pode ser construída usando como fio condutor a música que a cidade produziu e deu a conhecer, e que refletiu movimentos sócio-culturais que começaram discretos, ou até secretos, mas acabaram por tornar-se mais amplos. Do Cais do Sodré a Campo de Ourique, Alvalade, Rego, Santos ou Bairro Alto, cada zona contribuiu em diferentes momentos para enriquecer a banda sonora de Lisboa e a sua vitalidade sócio-cultural. Isso aconteceu porque existiam espaços com abertura para mostrar música diferente, como o Rock Rendez Vous, o Hot Club, o Cinearte de Santos, ou mesmo o Bairro Alto, enquanto zona de diversão noturna onde se manifestou primeiro uma cultura de clubbing. O efeito de contágio também foi importante, quando a convivência geográfica com outros músicos despertou novos interesses e serviu de modelo a novos projectos, como aconteceu em Campo de Ourique ou Alvalade, na era punk e pós punk.
Este tipo de dinâmicas agita os bairros e a cidade, permitindo a circulação de ideias, música e pessoas, além de trabalho e produtos. É difícil existirem concertos sem técnicos de som ou salas de espectáculos sem bares, ou gente que faça a manutenção do espaço, por exemplo. E depois há tudo o resto que pode florescer em redor dos movimentos musicais: lojas de discos, instrumentos, roupa, bares… A música também gera valor económico. Além da criatividade e das emoções, também estimula negócios, chama pessoas para novos territórios e até é capaz de criar novas necessidades e aspirações. Zonas como Bairro Alto e Cais do Sodré são exemplo disso, cresceram porque foram “ocupadas” por gente que procurava uma vibração particular, da qual fazia parte a música (ou alguma música) que por lá se podia ouvir. Territórios esquecidos são muitas vezes renovados pela acção de pessoas que procuram espaços para experimentar sem compromissos, sobretudo em zonas urbanas. Mesmo que isso (inicialmente) nem sempre aconteça de forma legal ou burocraticamente responsável (obedecendo às leis e respeitando licenças), o efeito desses espaços de convívio e agitação é fundamental para a cidade e para o seu tecido social, e tem, certamente, sido essencial para o desenvolvimento de cenas musicais em vários pontos do globo.
Podemos ver isso em Nova Iorque, por exemplo, especialmente na transição dos anos 70 para os 80. Uma cidade grande em época de crise económica severa, onde os bairros mais antigos e degradados ofereciam rendas baixas (ou nenhumas, sendo ocupados) a pessoas com novas ideias e sem medo de as concretizar. Artistas, escritores, realizadores, músicos, e outros agentes provocadores, entre eles Laurie Anderson, Philip Glass, Richard Hell, Patti Smith ou até Bruce Springsteen, protagonizaram um movimento de desalinhados que se cruzou com subculturas locais e criou obra diversa, que continua pertinente ainda hoje. Disco, punk, new wave, hip hop, salsa, o jazz mais avançado e a música mais experimental, cruzaram-se e conviveram em diferentes pontos de Nova Iorque, às vezes também no mesmo, promovendo uma revolução musical e social que misturou linguagens e criou ondas de contágio que chegaram a toda a parte e continuam a sentir-se quase meio século depois. Os Talking Heads serão o exemplo perfeito dessa amálgama de diferentes sons que animavam a cidade. A banda de David Byrne soube aproveitar elementos de praticamente todos os géneros musicais que agitavam Nova Iorque na altura, mesmo que o seu som tenha sido sempre mais do que mera soma dessas, e outras partes.
Berlim também tem uma história musical própria, passa por Bowie e Iggy Pop, nos anos 70, pelo punk nos anos 80, mas está especialmente ligada ao techno desde os anos 90 e tem sido a sua cultura única de música de dança, que ocupou zonas abandonadas de Berlim Ocidental, a torná-la numa das cidades mais agitadas e visitadas da Europa (o techno de Berlim foi reconhecido em 2024 como Património Cultural da Unesco). Londres também é musicalmente fervilhante, com décadas de música variada e muitas especificidades que podem variar consoante bairros. Rio de Janeiro, Joanesburgo ou Kingston, são outras cidades que se confundem com géneros musicais particulares. A lista poderia continuar ad eternum e Lisboa faria sempre parte dela, com a música que já conhecemos mas também com aquela que ainda não foi feita ou começa agora a borbulhar algures, sem que ainda tenhamos percebido.
Será que as diferentes tipologias musicais, muitas vezes localizadas no tempo e na geografia, ficam inscritas no adn da cidade para sempre? Se estivermos atentos, sim. Mesmo que os espaços e as bandas/músicos já não existam, ficaram os registos e a memória. Preservar a história e os marcos do passado e ter espaços abertos a novas possibilidades e artistas, é fundamental para que qualquer cidade vibre e viva. Música é entretenimento, e enquanto tal o seu acesso é facilitado, mas é sobretudo cultura, reflexo dos valores e motivações, expressão das preocupações individuais e colectivas das diferentes pessoas que nela habitam — nela cidade coração, mas também na sua periferia, onde germinam, sempre germinaram e continuarão a germinar, algumas das tipologias musicais mais aventureiras. A cidade está cheia de música. Só temos que saber ouvir.
A electrónica como libertação hedonista, como projeção de novos futuros pop
A reação é, invariavelmente, a mesma. Quando, no final do século XIX, o registo musical em fonogramas se tornou uma realidade, aqueles que se regozijaram com a democratização da fruição musical trazida pela gravação sonora tiveram a oposição de outros tantos, que anunciavam uma tragédia inimaginável a curto prazo, com o fim da música ao vivo e do emprego de tantos músicos e instrumentistas, palco trocado pela frieza dos estúdios, que passariam a ser visitados ocasionalmente para que o público ouvisse no conforto caseiro a música que já não despenderia esforço a encontrar em sala.
Um século depois, dá-se em Inglaterra um caso, hoje de contornos anedóticos, mas que mereceu à época preocupação e atenção estatais. Estávamos em 1982 quando o sindicato de músicos britânico aprovou uma moção para o banimento dos sintetizadores, caixas de ritmo e outros instrumentos eletrónicos “capazes de recriar o som de instrumentos musicais convencionais”. Os músicos britânicos, principalmente aqueles habituados a trabalhar nos musicais do West End, receavam perder o seu ganha pão, conduzidos que seriam à obsolescência por culpa de instrumentos eletrónicos que substituiriam naipes inteiros de instrumentos sem cobrar cachet.
Os receios, de resto, não eram novos. Em meados dos anos 1960, o sindicato tentara proibir o uso do Mellotron, teclado electro-mecânico cujas teclas accionavam som gravado em pedaços de fita, produzindo um curioso som eletrónico orquestral que se tornaria um dos mais reconhecíveis da música psicadélica e do rock progressivo e sinfónico. Tanto num como noutro caso, os desejos do sindicato não seriam cumpridos – ainda que o governo britânico acedesse às suas pretensões nos anos 1980, fazer cumprir a proibição, mantida no papel até 1997, era tarefa impossível. Afinal, já desde há décadas que os sintetizadores e demais aparelhos eletrónicos iam fazendo o seu caminho na música como veículo de novas explorações, primeiro na erudita, transbordando depois para a popular urbana.
Em Portugal, tendo em conta a precaridade geral e o obscurantismo que marcaram os anos longos da ditadura, todo este processo foi mais lento. Recorde-se que a chegada do primeiro sintetizador Moog ao país, pela mão de Miguel Graça Moura, então nos 'Pop Five Music Incorporated', levou a que este criasse uma banda em volta do instrumento, os 'Smoog', apresentado no Coliseu dos Recreios, em 1973, na primeira parte de um concerto de Freddie King, perante uma plateia espantada e muito entusiasmada com a novidade – terão sido chamados para três encores. Mas voltemos ao ano da proposta de boicote do sindicato britânico.
No que à história desta topografia imaginária diz respeito, 1982 é um ano de relevo. É nesse ano que António Variações lança o seu single de estreia, “Estou além”, mostra perfeita da ambição do músico de Amares em cruzar a pop, o tradicional e a modernidade eletrónica. Nesse mesmo ano, os Heróis do Mar editam “Amor”, single que, com o seu balanço apontado à pista de dança, o baixo sintetizado de Pedro Ayres Magalhães e os sintetizadores de Carlos Maria Trindade, se firma como clássico da música portuguesa e exemplo emblemático da nossa pop eletrónica – a que juntariam, no ano seguinte, “Paixão”.
António Variações definia o lugar da sua música “entre Braga e Nova Iorque”, ou seja, entre os arraiais tradicionais do Minho onde nasceu e o cosmopolitismo e arrojo pop da Big Apple. Porém, a sua música, tal como a dos Heróis do Mar anunciada em “Amor”, tinha outra protagonista essencial, Lisboa. Uma Lisboa particular, definida geograficamente entre o Príncipe Real e o Bairro Alto, espaços onde se assistia à transformação da forma como a música era vivida e fruída.
Numa altura em que predominava ainda a cultura das boîtes de outrora, com os frequentadores sentados à mesa onde haviam sido conduzidos pelo porteiro e, na pista de dança, os hits do momento ou êxitos intemporais, com parte da noite reservada a slows, tudo muito previsível, algo começava a mudar.
Foi no 'Trumps', inaugurado em 1980, espaço de encontro da comunidade gay, mas a que afluíam todos os desalinhados do conservadorismo e da pacatez, que Pedro Ayres Magalhães descobriu na pista de dança Rui Pregal da Cunha, que viria a ser o vocalista dos Heróis do Mar. Ali, naquele espaço do Príncipe Real, estava-se mais perto do 'Studio 54' nova-iorquino que das boîtes de outrora – noite fora, sem etiqueta a cumprir, dançava-se música hedonista e exigente. Entretanto, nesse mesmo 1982, inaugurava no Bairro Alto o célebre 'Frágil', ponto fulcral da nova movida lisboeta dos anos 1980, espaço sintonizado com as novas movimentações musicais chegadas de Inglaterra, principalmente, e dos Estados Unidos.
Eram espaços de encontro, de tertúlia, de libertação hedonista, espaços ideais, portanto, para a exuberância e abandono físico da pop eletrónica, linguagem a juntar-se na pista de dança, no que à eletrónica diz respeito, à música que floresceu do disco sound, às contribuições fundamentais vindas da Alemanha dos 'Kraftwerk', às manifestações da new-wave e do pós-punk mais sintonizado na cadência rítmica.
A história, naturalmente, não é linear. A música eletrónica, primeiro um reduto da erudita, com Stockhausen, Schaeffer ou Varèse, veria as suas propriedades ambientais futuristas aproveitadas para o cinema (Bebe e Louis Barron compuseram a inaugural banda-sonora de “Forbidden Planet” em 1956), acompanharia a corrida espacial, o futuro e o espaço ali tão perto, através de nomes como Morton Subotnick ou Delia Derbyshire, e caminharia lado a lado com a contracultura da década de 1960 através dos United States of America ou dos White Magic (onde encontrávamos Derbyshire). Sintetizadores e caixas de ritmo deram forma, nos anos 1970, à nova identidade germânica que a geração do pós-guerra, a dos Kraftwerk, Neu!, Klaus Schulze ou Harmonia, criou para o seu país. E foi armados de nada mais que sintetizadores e caixas de ritmos que os Suicide surgiram com estrondo no seio do punk nova-iorquino. Em Inglaterra, a explosão criativa do punk conduzia a novas invenções e, com o pós-punk insinuava-se o ritmo, tenso, maquinal, subterrâneo, como expressão do desconforto e do confronto que as guitarras e as palavras cuspidas manifestavam anteriormente.
Entretanto, em Chicago, DJ's percebiam que podiam fazer mais que passar e misturar canções e criavam a música de dança eletrónica que conhecemos por house. Pouco depois, em Detroit, de uma variação mais crua e pesada dos mesmos métodos nascia o techno. A tecnologia não vinha, obviamente, substituir os músicos, como temiam os sindicalistas britânicos, ofereciam-lhes novos caminhos e possibilidades de expressão. A pop electrónica foi uma delas, uma forma de pintar com novas cores, com uma vertente física evidente, ideal para libertação na pista de dança, a ideia de canção predominante no imaginário da música ocidental.
Em Lisboa, os punks iniciais abraçam a novidade, alinhados com a new wave e com os pós punk (recordemos os Street Kids ou os Corpo Diplomático, pré-história dos Heróis do Mar). Alguém como António Variações, conhecedor dos espaços de fruição libertária na pista de dança Europa fora e em Nova Iorque, define o seu som entre mundos. Um ícone do rock progressivo português, Manuel Cardoso, o Frodo dos Tantra, converte-se aos novos tempos quando se lança a solo num álbum intitulado, curiosamente, “Noites de Lisboa”. Tó Neto apresenta em concerto no Planetário de Lisboa a música eletrónica cósmica, mas de evidente pulsar pop, no sentido Jean Michel Jarre do termo, de “Láctea”, esquecido álbum de 1983 que mereceria mais reconhecimento. E, nessas portas abertas a uma nova geração e à sua criatividade que foi o 'Rock Rendez Vous', no bairro do Rego, ouviam-se bandas que recorriam à eletrónica para colorir a sua linguagem na música popular urbana, como os Essa Entente ou os Zona Proibida, bem como os DWART de António e Manuela Duarte, que se dedicavam à exploração eletrónica da pop.
Paralelamente, florescem experiências mais radicais, como a eletrónica improvisada dos 'Telectu' de Jorge Lima Barreto e Vitor Rua, ou a verve dadaísta dos 'Ocaso Épico de Farinha', sem esquecer, desde o Porto, a intervenção dadaísta em forma de synth-pop dos 'Repórter Estrábico'. A partir de Campo de Ourique a editora 'Ama Romanta', de João Peste, lança já no final dos anos 1980 álbuns de eletrónica experimental como "Plux Quba", de Nuno Canavarro, e "Música de Baixa Fidelidade", de Tó Zé Ferreira.
A evolução tecnológica traria, obviamente, outros desenvolvimentos. Às novas possibilidades de gravação, edição e processamento sonoro, com a plasticidade e portabilidade permitida pelos estúdios caseiros em forma de computador, juntou-se a natureza da noite, seus clubes e discotecas, onde a eletrónica ganhou espaço até ser presença assídua ou mesmo predominante. A eletrónica, na pop, no rock, no hip hop, no jazz, etc, tem presença constante na criação contemporânea e da fruição musical no espaço da cidade. Uma realidade que começou a desenhar-se de forma evidente, ano após ano, na década de 1990, época em que fomos apresentados à pop eletrónica futurista dos 'Hipnótica', em que o género ganha destaque enquanto fenómeno de popularidade mainstream com os 'The Gift', em que a música eletrónica de dança ganha catedral lisboeta no 'Alcântara-Mar'.
Os 'Micro Audio Waves,' que servem de mote a esta topografia imaginária, são, desde o seu aparecimento na alvorada do século XXI e até ao presente, um óptimo exemplo das linhas que se foram cruzando em toda esta história – tal como, de resto, o Musicbox, onde foram filmados para a série documental “Musicbox Club Docs”, por onde passa também esta topografia imaginária, clube no Cais do Sodré de abordagem musical múltipla ao pulsar contemporâneo e que, como tal, dá destaque e relevo desde a sua fundação às manifestações pop da electrónica, quer em palco, quer na pista de dança.
Os 'Micro Audio Waves' de Flak, Carlos Morgado e Cláudia Efe são banda eletrónica experimental e são eletrónica pop, são escapismo hedonista e ação artística multidisciplinar. Movem-se entre os palcos dos teatros, os clubes, os auditórios e os festivais. No fundo, conjugam em si as várias linhas que se definem e cruzam nesta história, o da exploração vanguardista, o da fruição física hedonista, o da procura de novas cores, dialogando com as artes cénicas, com que desenhar esse património intemporal chamado canção. Fazem-no enquanto procuram definir o lugar que ocupa a tecnologia eletrónica no processo criativo, agora que esta já não é, como durante tanto tempo, sinónimo de projeção futurista utópica, antes uma realidade entranhada em todos os domínios da nossa existência, abrindo espaço a renovadas tensões e receios, a novos questionamentos e possibilidades.
Ilda Teresa Castro — Quarenta anos após a publicação de A Arte Eléctrica de Ser Português, como revês a cena musical lisboeta dos anos 60 e 70? Nesse período, havia uma ebulição cultural e musical marcada por uma procura de identidade em pleno contexto de ditadura? Os anos 80, foram uma década de transição profunda com a explosão do pós-punk, da música eletrónica e do rock alternativo. Como percebeste o impacto desta mudança, tanto na música feita em Portugal como nos modos de vida das pessoas e, na própria cidade de Lisboa, que começava a abrir-se para o mundo de forma mais intensa?
António Duarte — Portugal, antes da revolução de 25 de Abril de 1974, era um país cinzento, amordaçado e ordeiro, culturalmente dominado pela trilogia Fátima-Fado-Futebol.
A rádio, o medium por excelência nas décadas de 50 e 60, dedicava a sua programação aos valores conservadores, em que a música servia para entreter e embalar o povo numa suave alienação da realidade.
Em paralelo com a tristeza e melancolia fadistas, o nacional-cançonetismo (termo introduzido pelo jornalista e radialista João Paulo Guerra, para classificar a música ligeira da época) cumpria a função cor-de-rosa de alimentar o espírito com balelas pseudo românticas.
O controlo estético da ditadura deixava pouca margem de escolha e de afirmação para a inquietação juvenil. Curiosamente, é em Lisboa, pela mão paternalista dos poderes dominantes, que surgem as primeiras manifestações de uma cultura de juventude: o primeiro festival de rock português, no cinema Roma, em 1963; e o concurso Yé-Yé do cinema Monumental, em 1965 e 1966.
O cinema Roma, a pretexto da estreia do filme “Mocidade em Férias”, com Cliff Richard, convidou os “conjuntos” portugueses emergentes a imitarem o grupo britânico The Shadows, negando-lhes a originalidade e a criatividade. A juventude precisava de entretenimento, mas tinha de ser controlada. A revista “Rádio & Televisão” escrevia que a iniciativa teve uma “particularidade agradável: não houve êxtase de jovens contagiados na plateia, não houve distúrbios na sala”. E concluía: “Provou-se que os ritmos modernos podem ter o seu lugar em Lisboa sem os alarmantes exageros de juventude que têm preocupado outras capitais”.
O concurso Yé-Yé acabaria por ser o grande motor da Pop portuguesa nos anos 60. Inscreveram-se 73 agrupamentos, representando mais de 350 jovens com uma média de 18 anos. O regulamento do concurso exigia que pelo menos uma canção fosse original e cantada em português.
Durante as várias etapas do concurso, o cinema Monumental recebeu as primeiras manifestações de massas de juventude na história do Estado Novo, um ritual incompreendido e temido. No palco, um grande cartaz avisava: “Atenção! Barulho que não permita o júri ouvir os conjuntos, objetos atirados para o palco, distúrbios na sala são motivos para a expulsão do espectador que assim proceder sem que a organização lhe devolva a importância do bilhete. A juventude pode ser alegre sem ser irreverente”.
Organizado pelo jornal “O Século”, o concurso, através do Movimento Nacional Feminino, enviava as receitas para as Forças Armadas que combatiam os movimentos de libertação nas colónias de África. Com a guerra colonial a iniciar-se em Angola, os jovens músicos que sonhavam com uma carreira de rocker tinham sobre as suas cabeças uma espada de Dâmocles. A maior parte dos grupos Yé-Yé dos anos 60 não teria futuro, com os seus membros a serem recrutados para a guerra colonial. Suprema hipocrisia!
Poderia pensar-se que do outro lado da barricada tivesse havido uma maior compreensão e apoio ao movimento Yé-Yé, mas o pequeno fenómeno cultural de massas dos primórdios da música Pop em Portugal seria vilipendiado à esquerda.
Em Abril de 1965, num texto publicado na revista “Plateia”, o cantautor José Afonso classificava de “decadentes” os rockers Yé-Yé e a juventude que os apoiava, criticando ainda a sua ousadia visual e corporal. Escrevia José Afonso que este estilo de música “representa a expressão de um processo de decadência de uma sociedade e que o tipo que vai espernear para o Yé-Yé está, em absoluto, destituído de valores intelectuais, estando irremediavelmente impossibilitado de apreciar algumas das outras manifestações musicais como o jazz”.
O que escapa a esta apreciação, algo preconceituosa, é a perceção de um vislumbre de Liberdade. Num país governado em ditadura, sem liberdade de expressão, dominado pelo fado e pela música ligeira, os jovens encontraram no movimento Yé-Yé uma afirmação de identidade cultural e nele sentiram as primeiras brisas de liberdade. Rapazes e raparigas juntos, num país em que não havia escolas mistas, dançando, pulando, esperneando, num rodopio sem fim, gritando de euforia, e, por que não, num delírio inusitado, conquistaram uma forma de sentir a Liberdade, sem palavras de ordem contra o regime.
Em finais de 60 e na primeira metade da década de 70, com a guerra colonial a aumentar em extensão e de intensidade em Angola, Moçambique e Guiné, a juventude que ia aos concursos Yé-Yé perde a inocência. A Liberdade sopra agora na Contra-Cultura, onde se integra a Cultura Rock, e os ventos predominantes são os do existencialismo. Pete Townsend, lendário guitarrista do grupo The Who, diria: “(Jean-Paul) Sartre é Rock”.
A Cultura Rock foi uma revolução cultural e de costumes. Pela primeira vez, os jovens assumiam um estilo de vida alternativo, formas de estar, de vestir e de socializar radicalmente opostas às dos pais. Apenas se ouvia rock. Novos caminhos se tinham aberto na evolução musical, técnica e tecnológica: psicadelismo, rock progressivo, hard-rock, cosmic rock, kraut rock, experimental. O jornal de contra-cultura “A Memória do Elefante”, elevou o novo Rock à categoria de Arte.
Ao contrário da Rádio conservadora dos anos 60, na década de 70, estações em FM como o 'Rádio Clube Português' e a 'Rádio Renascença', acompanham a ascensão artística da Cultura Rock, emitindo programas especializados nas diversas correntes rock, com locutores sóbrios e informativos que revelam no éter grandes obras-primas. Cândido Mota, com o “Em Órbita”, no RCP, era especialista em deixar correr os discos até ao fim, apenas com uma interrupção para mudar de face (quem nos dera na Rádio de hoje…). E em casa, o ouvinte gravava em cassete os discos emitidos na íntegra. Em matéria de divulgação musical, esta era a Rádio progressista. Antes do 25 de Abril de 1974.
A Revolução dos Cravos impôs outra música. Chega o Canto Livre, expressão sem amarras da canção de resistência e intervenção política. Toma o lugar do Rock. Progressivamente as estações de rádio sucumbem ao novo controlo do gosto. De novo o preconceito anda no ar. Quem toca ou ouve rock só pode ser filho de papá burguês. A Imprensa perde o interesse pelo rock. Os intelectuais ignoraram-no ou vilipendiam-no.
Em 1975, em pleno “Verão Quente” da revolução, os Genesis tocaram em Cascais, num pavilhão já desaparecido, para cerca de 10 mil pessoas. Tropas do Copcon cercaram o local do concerto e lançaram tiros de metralhadora para o ar, numa ação intimidatória a milhares de jovens que apenas assistiam ao concerto das suas vidas e que, pelos vistos, tinham pecado por gostar de rock.
No dia seguinte ao do concerto memorável dos Genesis, o jornal Diário de Lisboa publicava na primeira página, em título, sobre uma fotografia de Peter Gabriel, no palco, com um fato pós apocalíptico: “Genesis em Cascais - Rock e Droga”.
O PREC (processo revolucionário em curso), durou dois anos. Estávamos todos já fartos e cansados de ouvir canto livre de baixa qualidade, uma receita que se repetia, sem inovação e sem o mínimo primor técnico. Havia espetáculos de canto livre sem qualquer amplificação sonora, em que o cantor lançava a voz para dentro de um copo de plástico, para se ouvir melhor…
Mais uma vez, é a Rádio quem rompe com a decadência. Divulgadores corajosos, bem informados e com uma vasta cultura musical, como António Sérgio, Rui Morrison, Luís Filipe de Barros, Rui Pêgo, dão voz ao renascimento do rock com programas de crescente audiência. Em 1977, António Sérgio introduz em Portugal o Punk Rock, emitindo exaustivamente as novas estrelas anglo-saxónicas da revolução musical anti-sistema e lançando as sementes para a formação dos primeiros grupos punk portugueses.
O punk português nasceu em Lisboa. Foi arrogante, agressivo e suavemente malcriado. Nunca chegou, porém, ao patamar verdadeiramente revolucionário que conquistou, na história do rock, o álbum “Never Mind the Bollocks”, dos anarquistas Sex Pistols. Mas foi do punk lisboeta que germinaram novas correntes e obras ousadas que haveriam de florescer, em breve, com o movimento do Rock Português dos anos 80. E foi com o punk lisboeta que a Imprensa e Televisão voltaram os holofotes para a nova cultura de juventude que tardava em emergir após a Revolução. Numa conjugação rara de interesses, as grandes editoras discográficas portuguesas acrescentaram ao fenómeno do rock português a mais-valia da viabilidade económica, ao investirem em força no rock cantado em português, que se tornaria uma nova fonte identitária na cultura de massas em Portugal.
Ilda Teresa Castro — Após dois anos em Viena de Áustria e nove em Paris, regressas a Lisboa em 1993, onde desde então tens mergulhado em projetos a solo e colaborado com figuras-chave do jazz lisboeta e nacional. Com a tua vasta experiência, como analisarias a evolução e transformação do jazz em Lisboa ao longo dos últimos trinta anos? Sentes que a cidade se tornou mais aberta a novas sonoridades e abordagens experimentais, ou que o jazz por cá manteve uma certa fidelidade às suas raízes, resistindo à fusão com outras correntes musicais?
Carlos Barreto — Os anos 90 corresponderam precisamente ao boom do jazz em Portugal. Em Lisboa apenas havia o Hot Clube, raro espaço de reunião onde os poucos músicos existentes se podiam expressar, porém a sua escola de jazz fez aumentar substancialmente a comunidade dos músicos e outras escolas apareceram em Lisboa. O florescimento das lojas 'fnac' e da internet também contribuíram para que houvesse mais amadores a apreciar este género musical. Depois o poder político achou por bem institucionalizar o apoio à organização de concertos e festivais em Lisboa, replicando ao resto do país. Foi neste período que nasceu a primeira geração de músicos profissionais do jazz e das músicas improvisadas, pois trabalho não faltava e por sinal bem remunerado. A partir daí a coisa cresceu em bola de neve, mais músicos, mais espaços para tocar, mais informação…
Entretanto, Lisboa começou a ficar na moda em termos internacionais, facto que tem atraído inúmeros artistas/músicos a virem residir para cá. Lisboa tem já um padrão de produção musical que se aproxima do nível de outras capitais europeias (aproxima, mas ainda está longe…). O facto é que desde que estamos na União Europeia, Lisboa e todo o país se desenvolveram muito, o que se traduz em melhoria da qualidade de vida, melhor acesso à educação, mais cultura e informação…
Ilda Teresa Castro — De que forma sentes que a própria cidade de Lisboa se tem entrelaçado com o jazz ao longo dos anos? Vês a cidade a absorver e refletir essa tipologia musical através da sua arquitetura sonora, da vida noturna e dos espaços culturais, ou acreditas que o jazz em Lisboa continua a mover-se de forma mais autónoma, preservando uma certa independência face ao contexto urbano e às outras influências culturais que a cidade respira?
Carlos Barreto — Em Lisboa é já uma coisa natural frequentar espaços, bares, clubes de jazz, coletividades, museus, para assistir a a um concerto de jazz e não só de jazz, temos públicos para tudo, bem informados e com bom nível cultural, felizmente.
Ilda Teresa Castro — O vosso álbum No Waves (2004), com o icónico tema "Fully Connected", conquistou o Qwartz Electronic Music Awards em Paris, em 2006, arrecadando os prémios de melhor álbum e melhor videoclip. Seguindo esse sucesso, Odd Size Baggage (2007) foi nomeado para os Qwartz 2008, onde venceu na sua categoria com "Long Tongue", além de receber elogios de John Peel, da BBC Radio One, que o considerou um dos álbuns mais emocionantes do ano. Contudo, os Micro Audio Waves são nossos (risos), são uma banda lisboeta. De que modo a cidade de Lisboa, com as suas nuances e particularidades, as suas texturas urbanas e energia única, se tornou o catalisador deste som microaudiowaviano tão singular?
Cláudia Efe — Pois, Lisboa é pequena, sair à noite em Lisboa, nessa altura, ainda mais pequeno era. O Carlos morava muito perto de mim e éramos amigos há uns anos, a música sempre foi um elo forte entre nós. Ele conheceu o Flak antes dos Micro em outros projetos musicais, eles são o berço, eu fui um acrescento natural, que começou num apontamento no primeiro disco homónimo e no segundo disco, “No Waves”, o Francisco Rebelo junta-se como músico convidado. O nosso som eletrónico vem do acesso que tivemos aos primeiros computadores para fazer música e muitas experiências em casa. Também a Lisboa periférica, como todas as cidades, tem cenários e atmosferas sonoras industriais, portanto a música que ouvimos é muito influenciada por isso. A letra do “Long Tongue” é uma colagem de vários momentos urbanos que vivi com os Micro em digressão por várias capitais da Europa, mas também tem um do bairro onde cresci, a Zona J de Chelas. Somos 4 Lisboetas no mundo, é difícil perceber onde acaba e começa Lisboa em nós.
Ilda Teresa Castro — Utilizas instruções técnicas como matéria-prima para as letras de várias músicas, subvertendo a sua funcionalidade num exercício de poética desconstruída. Esse impulso experimental, que desafia as convenções da linguagem, é algo que permeia outras esferas da tua vida ou permanece delimitado à tua prática artística?
Cláudia Efe — Acho que sim, sou experimentalista em vários aspetos. A vida é muito experimental, porque na base está a curiosidade sobre o que te rodeia e o que escolhes para viver e sentir. Gosto muito de explorar as minhas sensações imagéticas, o som faz-me fantasiar, imaginar, cheirar, ver, sentir. Não gosto de muitas regras, o inconvencional, o inusitado, estimula-me, enriquece-me com novas realidades e perspectivas. Abre-me caminhos neurais novos. Retirar contexto, misturar e relacionar ideias, deambular no estranho. Gostava de morrer rica em experimentalismo.
Ilda Teresa Castro — A tua presença e voz no palco são elementos centrais que moldam a identidade e a singularidade da banda. Alguma vez sentiste que esse teu emponderamento que conjuga o exótico, o delicado e o sensual na tua performance ao vivo, tenha sido (sub)entendido como semiologia feminina de sensualidade per se, ao abrigo de um pensamento sexista redutor?
Cláudia Efe — Entendo que se possa ir por aí. Estar em cima do palco nunca foi para mim desejo ou vontade, mas gosto muito de estar em estúdio a improvisar, a imaginar e a co-produzir. Ultimamente descobri o prazer de estar comigo própria no palco e ter boa companhia na frente (risos). O palco é sempre ingrato para a pessoa de microfone na mão, porque não está presa, concentrada ou agarrada a um instrumento. Tem de compensar o enfrentar a multidão sozinha, apanhar a primeira bala (risos). Não nego que nascer branca, loira de olhos azuis, com uma cara não muito assimétrica e sem nenhuma particularidade física, é de facto um privilégio que beneficio. É mais fácil ter uma vida simpática com estes atributos, a sorte pode-nos calhar mais vezes. Mas sempre fui muito venusiana, por isso gosto dessa distinção que descreves porque me identifico com isso, sem palcos, não é algo trabalhado para ser assim. Hoje tenho muito mais consciência disso, e está presente nas letras e no som particular dos Micro, não só no palco. Há muita consistência sem qualquer superficialidade. E sem qualquer ofensa ao que é supérfluo, tudo é bom em boa dose. Mas não é, de todo, só mais uma loira com uns talentosos lá atrás, e muito provavelmente, nunca é só… mais uma loira com uns talentosos lá atrás.
Ilda Teresa Castro — A questão que coloco é no sentido inverso: já sentiste, enquanto vocalista e figura central da banda, algum tipo de pressão ou expectativa moldada por uma visão sexista? Ou, definitivamente no século XXI, esses padrões de género já não influenciam a perceção e a receção das performances das mulheres na música?
Cláudia Efe — Sim, eu entro mais tarde na música… anos 2000, parecendo que não, mas de certeza que deverá ter havido micro situações. Nada de que me recorde em particular, tirando o facto de haver ainda muito poucas mulheres músicas que penetrem o tecido dominado pelos homens… e, bandas mistas ou só de mulheres, continuam raras. Não falando de transgénero…
Na estrada, por exemplo, sentes o peso de haver poucas mulheres a trabalhar nesta indústria… principalmente fora dos auditórios nacionais. Lembro-me da tournée Femina, do Tigerman, e da felicidade que tivemos em estar todas numa carrinha cheia de cantoras, sozinhas, foi uma alegria! Até gritei “vamos ovular juntas, que alegria!” Portanto este acontecimento é raro… logo, por aqui se vê.
Sim, o sexismo está presente na falta de mulheres, um pouco por toda a parte da estrutura do negócio.
Ilda Teresa Castro — Em 2009 colaboraram com o coreógrafo Rui Horta para “Zoetrope” e agora, em 2024, voltam a cruzar caminhos com “Glimmer” que será apresentado no Teatro São Luiz em dezembro. Como sentes essa passagem e movimento entre o concerto e o espetáculo encenado? Sentes que há uma fusão orgânica entre ambos ou, pelo contrário, cada um exige uma abordagem performativa distinta e um tipo de envolvimento diferente com o público?
Cláudia Efe — Eu gosto de ser encenada e de trabalhar com o Rui traz-me muita segurança em palco, fica tudo mais completo a meu ver, e os meus erros são menos visíveis, mas a liberdade de um concerto também é muito gratificante porque o espaço de improviso é grande e ter boas surpresas num palco é raro e muito prazeroso.
Acho que o que mais gosto do espetáculo encenado é o processo. É imaginar como queres que a música que fizeste seja percepcionada num show total, é uma continuação do trabalho de estúdio. O trabalho não acaba com o disco e respectivos ensaios para o apresentar em palco.
Ilda Teresa Castro — Numa entrevista ao jornal Público em 17 de Janeiro de 2010, referiu que os grandes momentos do Hot Club aconteceram após o 25 Abril, quando o espaço se abriu, deixando de ser um clube restrito, de sócios para sócios. Entres esses momentos históricos, destacam-se o encontro de Carlos Paredes com Charlie Haden e a passagem de Lee Konitz em 1991, que sendo primeira página do jornal Sete, gerou uma fila que se estendia até ao Maxime. O Hot Club funcionou então, como uma espécie de catalisador, um espaço onde tradições musicais se cruzaram e novos diálogos se abriram, promovendo tanto a internacionalização do jazz português quanto a afirmação de Lisboa como um epicentro criativo. Ao revisitar esse período, como se desenha a influência do Hot Club na vida artística, social e cultural de Lisboa? Que movimentos e mudanças despoletou, e materializou este icónico clube, sendo palco não só de grandes concertos mas de encontros que redefiniram as coordenadas musicais e sociais da cidade?
Luís Hilário — O Hot Clube de Portugal (HCP) foi durante muito anos a única instituição que no nosso país agregou um número considerável de verdadeiros apreciadores e entusiastas desta música do Séc. XX, que é o Jazz. O HCP e o Luiz Villas-Boas, foram pioneiros na divulgação e criação de uma comunidade verdadeiramente interessada por esta estética, melódica e ritmicamente singular, e desta forma, esteve na origem de uma geração de melómanos, e mais importante do que isso, na origem de várias gerações de músicos que continuam (agora mais do que nunca) a enriquecer o panorama nacional, não só no jazz, como também em várias outras expressões musicais.
Será exagerado considerar que a sua importância na vida cultural da cidade, ascendesse a um nível global — apesar de poucos nunca terem ouvido falar do Clube, a maioria dos habitante de Lisboa nunca por lá passou — mas teve sem dúvida, grande importância para um núcleo de verdadeiros melómanos, na divulgação da música, na possibilidade de fomentar debates que reuniam (e continuam a reunir) à volta de um tema comum, gerações bem distintas.
O HCP foi um ponto de encontro muito eclético do ponto de vista social e cultural e contribuiu, sem dúvida, na projecção do país e da cidade de Lisboa, entre milhares, provavelmente milhões, de executantes e apreciadores de Jazz por todo o Mundo.
Na minha perspectiva, um dos principais méritos do HCP reside no pioneirismo da divulgação do Jazz, fator essencial para a criação de público e músicos que enriqueceram o panorama cultural da cidade e do país. Musicalmente, creio poder dizer que o HCP tornou não só a cidade de Lisboa mais cosmopolita, como também Portugal.
Ilda Teresa Castro — O percurso do Phil Mendrix no teu filme evoca salas de espectáculo em Lisboa que já não existem ou, ao longo dos anos, mudaram significativamente. Foram espaços fundamentais na cena musical lisboeta, acolhendo muitos artistas e bandas que moldaram a cultura da cidade. É o caso do Santiago Alquimista, da Gartejo, do Cinearte… ajuda-me a completar a lista, por favor…
Paulo Abreu — Também há imagens no Maxime e no Ritz Club que eram salas lindíssimas. Eu comecei a filmá-lo em 93, daí ter apanhado muitas dessas salas que infelizmente se foram extinguido .
Ilda Teresa Castro — Na filmagem, recolha de material e montagem sentiste algum tipo de nostalgia ao revisitar esses espaços? Lugares que, em tempos, foram fundamentais para a cena musical de Lisboa, mas que agora estão alterados ou perdidos para sempre. Vês o teu filme não apenas como um retrato da vida e percurso de Phil Mendrix, mas também como um Arquivo Histórico Audiovisual desses espaços, capturando a memória de uma cidade e de uma época que já não existe da mesma forma?
Paulo Abreu — Sim, claro. Principalmente das salas que além de serem bonitas tinham sempre muito público, como o Ritz, o Maxime e o Cinearte, onde os concertos estavam sempre cheios. Ou seja, as salas desapareceram não porque não houvesse público mas porque houve outros interesses, interesses políticos e/ou imobiliários que ditaram o seu final. O filme acaba por ser um registo involuntário desses espaços desaparecidos, já que eu não sabia que eles iam desaparecer na altura, pois nada o fazia prever.
Ilda Teresa Castro — O que te levou a essa abordagem da vida e obra de Filipe Mendes, também conhecido como Phil Mendrix? Ao longo do processo, como percebeste o entrelaçamento entre a trajetória dele na música e a movida musical de Lisboa?
Paulo Abreu — Eu já tinha ouvido imensas histórias sobre o guitarrista Filipe Mendes (na altura ainda não lhe chamavam Mendrix) mas só o vi pela primeira vez num sound-check — na altura já era uma reencarnação da sua banda Roxigénio. Ele tinha regressado do Brasil e tinha reformulado os Roxigénio, que iam fazer a 1º parte dos Ena Pá 2000 no Pavilhão Carlos Lopes (isto em 91/92 se não me engano). E de repente, vejo um guitarrista em êxtase, a deslizar de joelhos no palco e aos saltos, como se estivesse a tocar para uma imensa multidão, mas estava num mero sound-check e os técnicos de som olhavam para ele estupefactos. Fiquei fascinado com a sua alegria e paixão em palco e pedi ao Manuel João Vieira para mo apresentar. Esta cena aparece no filme em 16mm a preto e branco, filmado pelo Laurent Simões que na altura estava a trabalhar para o Edgar Pera.
A partir dessa altura, sempre que podia ia filmar concertos com ele e comecei a visitá-lo em casa. Fiquei surpreendido porque ele era muito saudável, fazia ginástica, não bebia álcool… era o oposto do estereótipo de uma rock star. Isso ainda me fascinou mais. E sempre que eu ia filmá-lo a tocar em casa, acabava por ficar sem cassetes ou sem baterias, porque ele começava a tocar guitarra e nunca mais parava. A vida dele era a guitarra, era tudo o que ele precisava para ser feliz.
Ilda Teresa Castro — Uma parte considerável do filme desenrola-se no Cinearte, em Santos, um espaço que, na memória coletiva se ergue como mais do que uma simples sala de concertos. Durante alguns anos, os concertos dos Irmãos Catita no Cinearte foram um ponto de encontro crucial da noite lisboeta, onde cada performance parecia desafiar as fronteiras convencionais entre palco e plateia. Revisitar esses concertos é também evocar uma época em que a música dialogava com o espaço e o público de forma visceral, quase ritualística — no filme alguém no público dança como em transe. Os concertos com o Phil Mendrix eram um catalisador de energia. Como recordas esses momentos e aquele ambiente singular e irrepetível que ressoa hoje como um testemunho do que Lisboa já foi e do que se perdeu?
Os concertos dos Irmãos Catita nos anos 90 no Cinearte eram um fenómeno da noite lisboeta, estavam sempre cheios e acabavam de manhã, frequentemente por exaustão do público já que a banda, e especialmente o Filipe, não paravam de tocar. Muitas vezes ia lá a policia parar os concertos, já com o sol a nascer.
O Filipe ía como músico convidado e os seus solos eram míticos, pela qualidade e pela duração. Começou então a ter uma nova legião de fãs e o Manuel João Vieira alcunhou-o de Phil Mendrix nessa altura.
Ilda Teresa Castro — O que são os Musicbox Docs e como convergem com a cidade de Lisboa?
Paulo Prazeres — São uma série de documentários musicais que teve por mote usar o Cais do Sodré como cenário para toda a ação. Captámos muito do quotidiano do Cais do Sodré e costumávamos dizer que estávamos a fazer uma série para ser vista 10 ou mais anos depois, como Arquivo Histórico de Lisboa da primeira década do sec XXI. Os restantes documentários, além de MAW, foram dedicados a Pop Dell'Arte, X-Wife, Terrakota, Diabo na Cruz, DJ RIde, Dealema, Dead Combo, JP Simões, Linda Martini, Bizarra Locomotiva
Ilda Teresa Castro — O Cais do Sodré, com a sua história de decadência e reinvenção, foi um epicentro subterrâneo onde culturas marginais e sons emergentes se encontraram. Este bairro outrora sombrio, com a sua atmosfera única, entre a decadência e a revitalização, funcionando como ponto de confluência onde o subversivo, o emergente e o mainstream se cruzavam e colidiam, viu-se redesenhado por camadas de boémia e de experimentação, influenciando profundamente a trajetória da cena musical lisboeta. O impacto é tangível: do punk ao pós-punk, do rock à eletrónica, o Cais transformou-se num espaço onde o passado colidiu com o futuro. Na tua perspectiva, de que modo o bairro influenciou e foi influenciado pelas dinâmicas socioculturais da cena musical lisboeta e como se cruza com a linguagem disruptiva e inovadora dos Micro Audio Waves?
Mário Lopes — A música nunca é só música. A frase aplica-se a toda ela, a toda a música, mas torna-se mais evidentemente verdadeira quando nos cingimos à música popular urbana, à música que cresceu e se desenvolveu nas mais diversas e inimagináveis direcções desde que o swing tomou de assalto as mentes e os corpos jovens, desde que o choque eléctrico do rock’n’roll se espalhou numa gigantesca onda mundo fora. A música é também emanação das cidades que habita, das gerações que nelas se sucedem, com diferentes centros geográficos, diferentes comportamentos e interesses, diferentes tradições e diferentes formas de questionar a tradição, com diferentes sons, naturalmente. O Cais do Sodré foi, historicamente, um dos bairros que fez a cidade de Lisboa, não na sua história oficial, mas na sua vivência marginal. Um centro à margem, e as margens e as artes sempre tiveram uma relação profícua. Em 2010 e 2011, o Cais do Sodré foi filmado, as suas ruas e clubes e esquinas, os seus centros mais ou menos distantes, enquanto se filmava a música que, no Musicbox, fazia a noite daqueles dias. Noite e clube. A pop electrónica, música de pulsação física criada com instrumentos digitais, é o som dela, da noite, e dele, do clube. Música de madrugada, música de uma eterna ideia de futuro. Os Micro Audio Waves estiveram lá, naquele bairro da cidade, no clube que nele floresceu. É dessa história que falaremos. Da música, da cidade, da pop eletrónica dos Micro Audio Waves.